De manhã, neste Sábado véspera de ramos, fomos ao Lugar de amanhã, a Betphagé.
À tarde, antes das três, quatro Kawas – homens vestidos com trajes otomanos, hoje mais ataviados que habitualmente, até uma espada arqueada presa à cintura – a abrir e a marcar o ritmo, batendo compassadamente sobre as pedras das ruas com os seus pesados bastões de extremidades metálicas, os Franciscanos de Convento de São Salvador saíram do Sede da Custódia da Terra Santa. Subiram o topo da rua de S. Francisco, enveredaram pela dos Frères, voltaram à esquerda pela de Bab El-Jawalida e entraram no Patriarcado Latino de Jerusalém. Aqui, o Patriarca com os seus cónegos e o seu seminário incorporaram-se no cortejo, que passou a ser encabeçado pela Cruz Patriarcal, duas traves horizontais. Éramos, agora, mais de uma centena os que, pela rua do Patriarcado Latino, depois pela Omar Ibn Al-Khattab – califa – até à de David – rei – e, a seguir, pela do Bairro Cristão até à de Santa Helena – imperatriz –, em procissão nos dirigimos à basílica do Santo Sepulcro.
O enunciado dos nomes das ruas é suficiente para transmitir a “compleq-cidade”, perdoe-se-me o jogo. Quão longa história no itinerário curto desta procissão que amiúde percorre as ruas de Jerusalém!:
David (c. ano 1000 aC) e o Povo de que foi rei, o êxodo e os exílios, a Torah e os profetas, as infidelidades e os juízes, a promessa e as alianças, as guerras – entre outros, os filisteus, consoantes flst que se tornam plst, palestin – e as conquistas, tudo mas principalmente o Templo de Salomão (ano 966 aC), purificado pelos Macabeus (ano 164 aC), feito novo por Herodes, o Grande (ano 20), o Santo dos Santos sobre o rochedo de Moriah, para os judeus, o do sacrifício do filho por Abraão (c. ano 1850 aC), para os muçulmanos, ponto de partida da fundacional ascensão nocturna de Mahomet em cavalo alado (ano 621), assinalada pela Mesquita dita de Omar, o conquistador de Jerusalém (ano 636), mas, de facto, a da Cúpula do Rochedo, só posteriormente ao califa construída (ano 691), significativo sinal da novidade do Islão entre estes muros;
Helena (ano 326), a mãe do imperador do Cristianismo-religião-do-Império (ano 313), o mesmo Império da destruição do templo (ano 70), peregrina da descoberta da Santa Cruz e impulsionadora das primeiras magníficas basílicas sobre os Lugares Santos, que, após a divisão do Império, agora não já sob Roma, mas sob Bizâncio (ano 395), não resistiram ao ímpeto avassalador dos Persas (ano 614);
São Francisco e a sua “cruzada alternativa” (ano 1219), não ingénua!, no quadro contraditório do desastre moral das Cruzadas, que ao fundarem o Reino Latino de Jerusalém (ano 1099), instituíram o Patriarcado do mesmo, que, por seu turno, não subsistiu ao inexorável retorno da espada (ano 1187) – ficaram os Franciscanos, subsistindo pacíficos a todas as violências que os séculos trouxeram, ou voltando sempre, sendo que eram a Custódia da Terra Santa (formalmente, desde 1342), os guardiães do Monte Sião e resistência viva da vida dos Lugares Santos, como continuam a ser quando o Patriarcado já regressou (ano 1847).
Bab El-Jawalida, a rua da Porta Nova, em árabe, como a dizer que em Jerusalém o cristianismo é árabe, já que esta porta, a última aberta na muralha (ano 1889), tinha como objectivo facilitar o acesso entre o Bairro Cristão e novos edifícios cristãos extra-muros; pediu-a o Cônsul de França, potência católica europeia – as outras eram a Bélgica, a Itália e a Espanha – diplomaticamente investida na missão de proteger os direitos dos católicos na Terra Santa, com o intuito de aceder à nova e imensa Hospedaria de Notre Dame, hoje confiada aos Legionários de Cristo, edifício de passado bélico, já que, durante a primeira Grande Guerra, serviu de quartel-general às forças otomanas que dominavam intermitentemente a Palestina desde 1770, até que Edmund de Allenby, apeando-se do cavalo por respeito para com a Cidade que reconhecia santa para Judaísmo, Cristianismo e Islão, nela entrou a pé (ano 1917) para instaurar o Mandato Inglês da Palestina, que duraria até que os judeus, legitimados pela tragédia indefinível da Shoah, holocausto indizível do seu povo e da própria Humanidade do Homem – e apoiados na Declaração Balfour, que prometia o “lar nacional judaico na palestina” (ano 1917), ao arrepio do Acordo Hussein-McMahon, que havia prometido ao palestinenses, no mesmo território, fazer parte da “grande nação árabe” (ano 1915) –, declararam e alargaram o Estado de Israel, (ano 1948 e os Seis Dias de 1967), ficando os palestinenses um povo sem país.
Tanto e tão espesso passado! Que futuro?
Sempre que o Patriarca Latino de Jerusalém participa em celebrações no Santo Sepulcro, os Franciscanos da Custódia da Terra Santa vão ao Patriarcado e acompanham-no. Como hoje, o Patriarca é recebido solenemente à porta da Basílica pelo Guardião da Fraternidade franciscana que cuida dos Lugares católicos aí existentes, organiza e anima a liturgia, acolhe os peregrinos e serve a comunhão com os Gregos – por cá diz-se assim dos Ortodoxos, como os romanos somos simplesmente os Latinos – e os Arménios.
Hoje, o padre Fergus Clarke, abertas as portas, o grande órgão elevando os primeiros acordes do Te Deum, saudou o Patriarca Fouad Twal e ofereceu-lhe a estola; o Patriarca ajoelhou e beijou a Pedra da Unção, diante do grande mosaico dos três momentos da Morte do Senhor: Deposição, Unção, Sepultura; das mãos do Guardião recebeu um Crucifixo que também beijou; foi incensado e aspergiu os presentes com água. Tudo isto sob o olhar alto das Capelas do Calvário, sobre o acesso à de Adão.
A procissão re-organizou-se e dirigiu-se à edícola – do latim, “pequena casa” – do Túmulo santo; à porta desta, um ministro de cada uma das principais Tradições cristãs presentes: um latino (franciscano), um grego e um arménio; o Te Deum percorria a Basílica, elevava-se agora, cónico, na sonoridade dos tubos pela verticalidade circular da Anastásis- do grego, “ressurreição” –, onde a luz jorra do alto por altíssima clarabóia a encimar a cúpula imensa raiada e estrelada; estacionados frente à entrada da edícola que abriga o Túmulo, podíamos ver a obscuridade interior; acompanhado pelo Vigário Custodial, o Patriarca entrou para venerar o Lugar da Ressurreição do Senhor; o Te Deum continuava, gregoriano, as sílabas suaves e seguras, melismáticas, resistindo a render-se, longas, prolongadas nas vozes que as diziam, bailando jubilosas a melodia antiga, entre as imensas colunas, no lugar da história e do mundo que mais o justifica, aqui, tempo e lugar, Jerusalém.
Retomo a interrogação que deixei suspensa às portas da Basílica do Santo Sepulcro. Que futuro? Que futuro diz um Sepulcro?
Naquela tarde de Sábado, na Basílica do Santo Sepulcro, aconteceu solenemente a procissão quotidiana que todos os dias, com excepção de Quinta e Sexta-Feira Santa, os Franciscanos aqui realizam, há séculos, visitando, em 14 passos, os momentos da Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor. O Ordo Processionis apresenta um brevíssimo apontamento histórico sobre as origens e desenvolvimento deste ritual, enraizando-o já na antiga Igreja de Jerusalém, que realizava procissões litúrgicas aos lugares santos da Cidade, a que se refere Egéria, a monja galega (?) que visitou a Terra Santa entre 392 e 394. Crónicas de peregrinos do séc. XIV referem a procissão já na Basílica, mas ainda não quotidiana. Os Franciscanos virão a dar-lhe este ritmo e, progressivamente, a procissão caminhará para o trajecto e o formulário que hoje apresenta. Uma reforma de 1623 consagrará o essencial que, em 1925, fixa definitivamente as 14 Statio e os textos cantados.
A procissão, entre as quatro e as cinco da tarde, inicia-se no Altar do Santíssimo Sacramento na Capela da Aparição de Jesus ressuscitado a sua Mãe – tradição não fundamentada nos Evangelhos mas que remonta já a Taciano e, depois, S. Efrém, que viveu no séc. IV. A língua usada é exclusivamente o latim, o que, neste contexto, tem todo o sentido. De facto, na Basílica do Santo Sepulcro, todas as outras Igrejas usam línguas litúrgicas, que são um elemento distintivo da sua identidade. Além disso, é tão grande a fono-diversidade católica, cada dia, que seria difícil encontrar uma dominante e impossível uma comum; em latim, são no entanto distribuídos os Ordo Processionis com traduções em cinco línguas modernas – sim, o português é uma delas. Todos os participantes recebem este guia, bem como uma vela.
Em cada Lugar visitado, canta-se um hino, uma antífona – texto evangélico referido ao momento – com responsório e uma oração; a terminar cada etapa, canta-se o Pater, uma Ave Maria e o Gloria Patris. Tudo é cantado, do princípio ao fim, em recto tono ou, em Gregoriano, apenas os hinos a partir das estações do Calvário.
Das catorze estações, a primeira é eucarística; depois, até à sexta, contemplam a Paixão antes do Calvário: coluna da Flagelação, Prisão, Divisão das vestes, descendo duas vezes, cripta do encontro da Santa Cruz, subindo, capela de Santa Helena, subindo de novo, coluna da Coroação e Impropérios; subindo ao Calvário, assinalam-se a Crucifixão, a Morte e a Senhora das Dores – a imagem portuguesa da Mater Dolorosa; descendo, para-se junto à Pedra da Unção e segue-se para o Santo Sepulcro, onde se comemora a Ressurreição; visitam-se, finalmente os lugares da Aparições, a Madalena e a Maria, e tudo conclui com um breve momento de adoração e a bênção eucarística.
Diariamente este itinerário santo se cumpre, nos Lugares santos maiores da fé cristã. Os franciscanos da comunidade da Basílica têm este encargo e cumprem-no fielmente, com uma constância e uma perseverança dignas de registo. Sempre, pelo menos doze participam nesta comemoração ritual dos Mistérios da Salvação: um preside, dois assistem-no, três estão em diversos lugares da Basílica, a tentar criar condições de silêncio e de respeito para que o acto possa cumprir-se com dignidade, os outros integram a procissão e vão organizando, em cada momento, os demais participantes, que tanto podem ser muitos como quase ninguém. É belo e pleno de significado esta revisitação quotidiana da memória dos Acontecimentos trágicos e gloriosos da Páscoa, aqui, nos lugares em que aconteceram, Quinto Evangelho. Seria tão enriquecedor, para as peregrinações organizadas que vêm de todos os lados, aproveitar esta expressão quotidiana tão significativa, tão católica, de veneração pelos Mistérios Pascais. Algumas fazem-no.
Ainda que não haja fundamento bíblico para alguns, todos eles vêm de Tradição que se perde no tempo. E a Tradição, entre outras coisas, quer dizer isto: ainda que o Acontecimento não tivesse acontecido ali, aqui venera-se o significado salvífico desse acontecimento, contemplando esta realidade espiritual ajudados pela materialidade de uma pedra, uma coluna, o chão, uma imagem, um ícone, um altar… o que seja, que se ofereça aos nossos olhos e ao tacto, que possamos, se simples, tocar e afagar e, liturgicamente, incensar e cantar e, pessoalmente, até beijar e sentir a Presença e confiar uma prece e contar um desabafo; e se não aconteceu ali no passado, até se não aconteceu, venerar assim, com esta intensidade toda dos sentidos todos faz acontecer no presente, permite a Deus tocar-nos e beijar-nos e acariciar-nos, a ouvir-nos e consolar-nos pela veneração que lhe oferecemos e que devém mediação da sua acção salvadora no sentido íntimo do Acontecimento contemplado… e permite a nós sentirmo-nos ouvidos e consolados.
Neste sábado véspera de ramos, a Procissão foi a mesma de todos os dias, mas solene, com centenas de pessoas, presidida pelo Patriarca, toda cantada em gregoriano e polifonia, não simplesmente em recto tono e, principalmente, dando três voltas ao Sepulcro, como três são os dias da Morte à Ressurreição, a vela acesa na mão, cantando transportados pela sonoridade solene do grande órgão as palavras antigas, como que eternas, do hino Aurora Caelum… todo o mundo rejubila! Ressurgiu o Redentor!
Retomo as questões que deixei suspensas, desta vez no início da Procissão que, cada dia, simples ou solene, comemora a Paixão, Morte e Ressureição de Jesus: Que futuro diz este Sepulcro? Que pode ele dizer sobre o futuro desta Terra Santa?
O passado dita premências. Ao fim de dois meses aqui, a entrar na Semana Maior, uma convicção tenho por certa, ouvida também a muitos de muito diversas proveniências: o futuro, aqui, passará pela presença dos Cristãos. E esta, segundo me dizem, cada vez se vê mais difícil, porque a tensão israelo-palestiniana funciona como uma tenaz que aperta e impele os cristãos para a emigração. De algum modo, é o mesmo movimento que se vai verificando, nalguns países já em registo martirial, como claramente acontece no Iraque… e mais, já… e o que mais se verá, dizem-me os que me falam a partir do conhecimento dos segredos desta Terra, que só aos que a vivem é dado conhecer.
O itinerário percorrido pela Procissão, cada dia, visita Lugares da memória viva de uma sabedoria diferente – alternativa, como o foi a singular ‘cruzada’ de Francisco, entre os mais próximos no seguimento, a este lado da história –, é visita a um Vivente que atravessou estes Lugares tornando-os um tempo sem prazo nem limite, ao semear-se aqui, na noite da terra, e dela amanhecer dando ao mundo um Dia novo, cada dia, novo. Estes Lugares são, por isso, definidores de um aqui permanentemente gerador de itinerários por percorrer, de novidade a descobrir, de vida para acolher.
Os cristãos, infinitesimal minoria – serão 2%, seja no estado de Israel, seja nos Territórios da Autoridade Palestiniana – da população da Terra Santa são a Igreja-Mãe, desde sempre assim chamada, como frequentemente o recorda o seu pastor actual, o Patriarca Latino de Jerusalém. Todos aqui nascemos, gerados nos mistérios que esta Terra conheceu e em que os ancestrais dos cristãos de hoje, aqui, acreditaram. Seguiram Jesus, numa peregrinação que nEle aqui começou e não terá fim enquanto a realidade inteira não se encontrar nEle instaurada e Ele vier, de novo, o Justo vestido de Amor, o Amante coroado de Justiça, a consumar a esperança nua, a flagelada e humilhada, coroada de espinhos. Aos cristãos de hoje, aqui, filhos dos primeiros discípulos, membros das primeiras comunidades de crentes na Terra de Jesus, cabe cumprir um desígnio histórico de paz e reconciliação, um desígnio pascal.
Na manhã deste sábado, véspera do Domingo de Ramos, seguindo o programa das Solenidades da Semana Santa em Jerusalém, os franciscanos da Custódia da Terra Santa tinham peregrinado a Betphagé e celebrado já, como quem abre num dia a espera do outro dia, redimindo o presente pelo futuro, ao comemorar o passado, a Solenidade, simplesmente, só Palavra e Beleza. E muitas pessoas, que a Igreja não foi suficiente.
Ainda não tinha ido a este santuário. Aqui se recupera incessantemente a última etapa de Jesus no caminho para Jerusalém, a exaltação do povo em palmas para desespero dos chefes. As suas paredes e a abóboda são um fresco. São três os níveis de leitura. O primeiro, ao nível dos olhos, conta os acontecimentos que os evangelistas narram, o corte de ramos nas árvores e palmeiras, o asno submisso, as capas que se estendem, as crianças que cantam, os homens e as mulheres que aclamam, Lázaro, Marta, Maria, Apóstolos, Jesus e, estranhamente neste contexto de hossanas, três homens, com o ar preocupado de quem tem poder e o sente ameaçado, um deles com um rolo que pende, aberto, da sua mão, com uma citação, Jo XII 19. O segundo nível de leitura é a Via Crucis. A abóbada, um jardim suspenso, é o terceiro nível de leitura, pequenos ramos de oliveira e flores dos campos, espalhadas ao calhas, como se o pintor tivesse pintado desenhando com os braços gestos de semeador, as mãos cheias e pródigas de flores campestres e verdes ramos a lembrar unções; olhando melhor, percebi um dinamismo estranho nas flores e nos ramos da abóboda: não pareciam atirados de baixo, pelas multidões em festa, pareciam lançados do alto, tombando mansamente… sobre a Via Crucis. A paz e a confiança.
Jo XII 19: Os fariseus então disseram uns aos outros: vêde, nada conseguis, toda a gente vai atrás dEle.
Jerusalém, 31 de Março de 2012
Pe. José Nuno