sábado, 7 de abril de 2012

5º passo – Sexta-feira Santa - Aqui, naquele Dia em que o Senhor morreu

São dez da noite desta Sexta Feira-Santa aqui, Jerusalém, acabo de chegar da Basílica do Santo Sepulcro. Aqui deixámos o Senhor, figurado numa belíssima escultura articulada do Crucificado. Infelizmente, por regras do Statu quo, não poderá aí permanecer até ao raiar do Domingo. Amanhã já cantaremos aleluias. Mas hoje, aos olhos das centenas de pessoas que participaram no Enterro do Senhor, aqui, Ele foi deposto no túmulo e as portas encerradas.

Antes, junto ao altar da Aparição a Maria Madalena, tínhamos iniciado um itinerário pelo escuro da Basílica, de castanho ou negro, conforme hábito ou batina, empunhando luz, perto de duas centenas de franciscanos e religiosos de muitas outras congregações, diocesanos também, vindos de todo o mundo. O silêncio impunha-se por si mesmo, como necessidade do espírito diante do Mistério representado e a multidão que seguia o Crucificado viveu-o. Um canto, ao longo de todo o tempo, recorrentemente, insistente o Miserere mei Deus, misericórdia de mim ó Deus, única palavra adequada do homem que contempla a Deus crucificado.

Detivemo-nos em vários lugares, impressionou a coluna dos Impropérios. Palavra proclamada, sempre em torno da Paixão, sempre o silêncio, sempre miserere e partíamos, levados pela melodia lenta e penitencial que entoávamos como se ela é que nos entoasse a nós, a nossa indigência, no escuro antigo da Basílica do Santo Sepulcro em Jerusalém, a comemorar a Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Subimos os difíceis, altos e gastos degraus que acedem às capelas do Calvário. Contemplámos os Actos da Crucifixão sob o lugar vazio do rosto da Mater Dolorosa do mosaico da parede do fundo – é verdade, não tem feições o vulto alto e vertical da Mãe, mãos postas sob o peito, de pé, enquanto, no chão, o Filho é pregado na Cruz e esta ausência de rosto provoca uma sensação de tragédia maior do que o pranto desatado de Madalena, prostrada junto ao seu Senhor e é como se o autor do mosaico da capela da Crucifixão quisesse dizer que o outro rosto, o da escultura oferecida pela Rainha D. Maria I de Portugal em fins de oitocentos, mesmo ao lado, quem vai para a Capela da Morte, expressasse tudo o que um rosto de Mãe pode expressar aqui.

E foi à Capela da Morte que o Crucificado foi levado. Detrás do altar de mármore dos Gregos, em frente dos ícones vestidos de prata, dita a Palavra, consummatus est, tudo começou. Até ali nada havia surpreendido. Mas agora, miserere, os diáconos despem as dalmáticas negras bordadas a ouro e aproximam-se, miserere, e passam um lençol branco belamente bordado sob os braços do Crucificado, silêncio, um toma uma tenaz e prende a Coroa de Espinhos e mostra-a a todos, silêncio, e pousa-a na larga bandeja cinzelada colocada no centro do altar de mármore, o outro diácono toma um martelo e bate três vezes na extremidade direita da trave horizontal da Cruz, com a tenaz retira o Cravo da Mão do Senhor, mostra-o claramente a todos, silêncio, coloca-o na bandeja e o Braço tomba, o primeiro diácono com o martelo bate três vezes na extremidade esquerda da trave horizontal da Cruz, toma a tenaz e retira o Cravo da outra Mão, mostra-o em volta, silêncio, coloca-o na bandeja e o Braço tomba amparado pela sua mão, o segundo diácono retoma o martelo, bate três vezes no pé da Cruz e com a tenaz retira o Cravo dos pés do Senhor, mostra-o elevado, silêncio, e coloca-o na bandeja, silêncio, o Corpo do Senhor é descido da Cruz, suspenso e tomado pelo lençol branco bordado, silêncio, colocado sobre o altar de mármore branco e a Palavra entoada em gregoriano por outro diácono faz surgir dos confins do Evangelho de João, José de Arimateia, o discípulo oculto Nicodemos, o que procurara o Senhor de noite, em segredo, o primeiro vai a Pilatos pedir o Corpo Morto e desce-O da Cruz, o segundo traz uma mistura de mirra e aloés e ambos o prepararam como devia ser entre judeus, hoje, aqui, já havíamos chegado abaixo, miserere, o Crucificado colocado sobre a Pedra da Unção, foi o Custódio da Terra Santa que deixou que lhe tirassem a rica capa de asperges negro e ouro, cingiu um avental de linho branco com fitas roxas, tomou uma por uma as quatro ânforas de prata que quatro diáconos traziam nas mãos e derramou, em gestos que inscreveu lentos no ar sob as lâmpadas sobre a escultura de madeira, olhando através dela para Aquele que nela se representa, os perfumes e as essências prescritas que se espalharam pelo ar, como se trazidas pelo fumo do incenso que chegava, como se Nicodemos e José de Arimateia estivessem a incensar o túmulo novo que havia no jardim onde Jesus havia sido crucificado, por causa da Páscoa dos Judeus que está a acontecer agora, hoje já Shabat, nesta noite em que o Custódio, deposta a imagem do Corpo Morto de Jesus Crucificado e descido da Cruz e preparado para a sepultura, incensou a entrada da edícula da Anastásis e fechou as suas portas, depois de ter visitado o que deixou jacente, aqui, no lugar onde, segundo a Tradição, Jesus foi sepultado.

Esta foi a única das procissões na Basílica em que as velas se extinguiram, ou sobrou pequenino coto, nos nossos dedos.

Antes do Enterro do Senhor, tinha acontecido, na capela da Crucifixão, propriedade dos latinos na Basílica do Santo Sepulcro, pela manhã, a Celebração da Paixão do Senhor como em todos os lugares do Orbe católico, mas em Jerusalém foi o único em que o Narrador, a dado passo, se deslocou à capela da Morte do Senhor, sete passos ao lado, atravessando o olhar suspenso no tempo da Mater Dolorosa, cantou: Et inclinato capite HIC tradidit spíritum e se ajoelhou sob o altar, enquanto todos ajoelhávamos, e beijou o centro da circunferência de prata que se abre sobre a pedra do Calvário, fendida pelo terramoto daquela Hora noa, como se vê, aqui, hoje, se visitamos a capela de Adão, exactamente sob a da Morte do Senhor, aqui.

A seguir, foi a Via Crucis, começámos a primeira estação nos pátios ao sol de uma escola muçulmana dos mais pequeninos, junto à Flagelação. Ao descer havia cruzado com dois grupos a fazer a Via Crucis, um junto à ajuda de Simão de Cirene, africanos vestidos de muitas cores, não sei de que país, mas falavam francês e, depois, no lugar da Primeira Queda, outro, asiático, a quem não percebi palavra nenhuma a não ser Jesus. Via Dolorosa acima, enquadrados por forte aparato de segurança, cercados de vendedores e compradores, peregrinos e/ou turistas – quantas vezes tenho pensado nestes dias, aqui, na chave proposta por Gilles de la Taille, de peregrino a turista, para interpretar a realidade circundante, a procura do filme e da fotografia em vez da procura da vivência do espírito dos Lugares, como se lembranças para levar, apenas contassem as evidentes e comprováveis registadas tecnicamente, em vez da impressão interior profunda e da oração – até chegarmos outra vez ao mesmo Lugar, o Santo Sepulcro. Catorze vezes ouvimos, nas quatro línguas usadas, aqui, porque aqui foi, uns Actos segundo a Tradição, outros segundo os Evangelhos, alguns comprovados sem qualquer dúvida pela arqueologia, Jerusalém, Quinto Evangelho. Uma multidão vinda de todas as nações participou, muitas religiosas, as filhas de Madre Teresa destacando-se na brancura e azul dos hábitos, elas que tão bem conhecem estas ruas, visitadoras diárias que são dos doentes dos Bairros Cristão e Muçulmano; depois da Condenação e da Imposição da Cruz, Quedas e Encontros, a Primeira e a Segunda e a Terceira, a Mãe, Simão, Verónica, onde as Irmãzinhas de Jesus, pintam ícones, elas, as discípulas de um dos mais veros ícones de Jesus da modernidade, Charles de Foucault, as Mulheres de Jerusalém, que bem precisam de chorar por seus filhos, pensei há umas semanas atrás, quando, junto à Porta de Damasco reparei que os brinquedos mais expostos nos vendedores árabes eram metralhadoras, já vários meninos, o último foi no Domingo de ramos, ‘dispararam’ sobre mim e, passos adiante, no mesmo dia, estávamos na antevéspera da Festa do judaica do Purim, fui encostado à parede para dar lugar a um desfile de crianças de um infantário mascaradas, muitas delas de soldados empunhando metralhadoras, apetece parafrasear Hannah Arendt, a banalidade da metralhadora; e a Via Crucis continua, agora de novo na Basílica, capelas do Calvário, Jesus despojado e crucificado e morto e descido da Cruz e descemos e, na Rotunda da Anastásis, concluímos junto ao Túmulo Santo.

Ainda antes de descermos para o nocturno Enterro do Senhor, tínhamos vindo, rua de São Francisco abaixo, polícias e kawas à frente, sempre à Basílica, rezar o Ofício de Trevas, sempre diante do Sepulcro, onde deixámos o Senhor sepultado, hoje, perto das dez da noite, aqui.

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