sábado, 31 de março de 2012

1º passo - Jerusalém, mãe com rosto português

Jerusalém, a cidade da paz, é um lago em tempestade onde o mundo todo vem para se ver no espelho. Aqui o passado é sempre presente e o futuro, talvez por ser esta a cidade onde morrem os profetas, não é profetizável. Porque Jerusalém é como a palma da mão da história: todas as linhas da vida a percorrem, desenhando projectos de humanidade misteriosos e indecifráveis, que arrastam o tempo para além da linha do horizonte, a única, esta, que se pode descrever, ainda assim sem a dizer inteira na sua beleza, levante-se sobre ela o sol ou tombe a poente.

Jerusalém petrifica quem chega – esta é a cidade das pedras santas e, além disso, também daqui partiu Petrus, Pedro, o primeiro dos apóstolos, que consigo levou a primazia à capital do Império; este haveria de vir e reduzir Jerusalém, a cidade que petrifica os chegados, a um monte informe, porque dela não restou pedra sobre pedra.

Jerusalém é uma cidade pétrea que petrifica de espanto, cala de pasmo. Jerusalém, tremenda e fascinante – tremendum et fascinans, diria Rudolf Otto, o teólogo da experiência do numinoso, do sagrado como mistério – a cidade do Muro, do Túmulo e da Rocha.

Jerusalém, cidade pétrea, de pedras mudas com nomes divinos em nome de quem todos clamam, pedras gritantes caladas que emudecem a boca de quem chega, inesquecível para quem parte, não fora a língua colar-se ao palato. Não para quem parte; antes, para quem é levado, porque de Jerusalém ninguém parte: quem quer que a deixe vai levado, empurrado, exilado. E esta é a trama do drama de Jerusalém, tragi(-)cidade inconclusa sempre iminente, lago em tempestade em que a história se vê ao espelho, como quem olha a palma da própria mão à procura de si e do seu a-vir… tantas vezes irremediavelmente montão de escombros… sempre provisório!, proclama Jerusalém.

Jerusalém é esta cidade que engole e faz seu – como se a donzela é que desposasse o construtor, porque construir é o modo de ser que a cidade sempre reclama – quem atravessa os umbrais das suas portas.

Jerusalém é avassaladora. Tudo aqui é excessivo, é demasiado significado para tão circunscrito significante: pode o trino ser uno? Por isso Jerusalém avassala, torna vassalo quem chega e a ninguém – di-lo o fio dos séculos lido na sucessão dos estratos arqueológicos – presta vassalagem: quem quer que a julgue tomar apenas a serve e perde-a no seguinte solavanco do tempo a fazer-se idades do Homem nos patamares sobrepostos e depois escavados, era após era, nas entranhas maternas universais desta cidade de pedra-entranhas de mãe. Jerusalém é a cidade-mãe.

O deambular peregrino de um inestimável ano sabático trouxe-me a Jerusalém. E a cidade calou-me profundamente. Atou as palavras em mim e atou-me a elas, com um tão veemente silêncio, que só agora, ao fim de dois meses, talvez por força da Páscoa que se avizinha, consigo libertar as palavras ouvidas e caladas e tentar dizer uma liberdade nova, a suprema tarefa da palavra humana, nesta cidade, entre todas a da palavra divina. A esta quereria atar-me, atar-me para sempre, definitivamente, de uma vez por todas. Mas compreendo que a liberdade não é assim. Ela torna todos os compromissos provisórios e, por isso, só ela – a liberdade – lhes garante cada dia novidade e instaura, no seu seio, o lugar amniótico da verdade, tornando cada instante momento criador. E Jerusalém é como a liberdade, cidade-mãe, lugar amniótico, respiração sôfrega, dores de parto, dores de morrer para dar vida – todos lá nascemos, diz a palavra inspirada, que interpretação restritiva alguma consente, por mais absoluto que seja o poder que a pretenda.

É!, é o vir da Páscoa ao meu encontro, aqui, em Jerusalém, onde ela acontece(u) que desata em mim as palavras e me desata delas impondo-me oferecer as que me são dadas. Hoje inicio esta colaboração – poderá ser quotidiana, ver-se-á – sem pretensão nem pretensões com a Ecclesia. Sendo-me dado o privilégio de viver a Páscoa em Jerusalém, quero partilhá-lo, quanto seja partilhável, com os leitores que se aproximem desta janela aberta sobre o mundo que é a agência noticiosa da Igreja no meu país. Poderia, como já aconteceu e muito legitimamente, partilhar com os meus amigos. Mas a Páscoa não consente tal segredo. Oferece em si mesma um tal dinamismo de universalidade que pede esta aventura de partilha, de exposição pessoal num tempo que quero discretamente vivido. Decido fazer um parêntesis no escondimento, por fidelidade presbiteral à Páscoa. Encaro o percurso que agora começo convosco como modo de vivência ministerial do Mistério nuclear dos mistérios de que sou ministro, nesta Páscoa singular da minha vida de padre, a viver tempo sabático.

Escrevi aqui destacando esta referência à circunstância de lugar – como escreverei sempre, excepto se me esquecer ou distrair. É que este aqui dito desta cidade, nesta cidade, Jerusalém, reveste-se de um significado singular. É em razão deste significado que intitulei esta rubrica de crónica e reflexão da experiência da minha Páscoa em Jerusalém como o fiz: Aqueles dias, aqui.

Paulo VI, o primeiro papa a percorrer, em 1964, as ruas deHoje inici Jerusalém depois que Pedro partiu, na Exortação Apostólica Nobis in animo, de 25 de Março de 1974, sobre o dever de todos os cristãos assumirem a Terra Santa como seu património espiritual e contribuírem generosamente – o que é cada vez mais premente, de resto – para fazer face às necessidades da Igreja presente na Terra Santa, que definiu como a geografia da salvação, lugar da história da salvação.

Ao dizer aqui de Jerusalém, é esta circunstância de lugar que invocamos – mas é Jerusalém apenas circunstância de lugar? Na Exortação pós-sinodal Verbum Dominum, afirma o Papa Bento XVI, entretanto também já peregrino de Jerusalém: «As pedras sobre as quais caminhou o nosso Redentor permanecem para nós carregadas de memória e continuam a ‘gritar’ a Boa Nova». O meio é a mensagem, diria Marshall McLuhan, que atravessou o século XX a pensar a comunicação. E continua o Papa: «Por isso os padres sinodais recordaram a feliz expressão que chama à Terra Santa o ‘Quinto Evangelho’».

A genialíssima intuição deste apelativo, muito usado aquando da peregrinação de Paulo VI – contou-me hoje mesmo o Guardião do Convento de São Salvador – deve-se a um dos expoentes do Positivismo do século XIX, Ernest Renan, que conheceu a fundo os Evangelhos e fez arqueologia. Chamou à Terra santa Quinto Evangelho dado «o impacto do acordo entre os textos e os lugares, uma maravilhosa harmonia entre o texto evangélico e a paisagem», como escreveu na introdução à sua Vie de Jésus, no terceiro quartel do século que assinalou com esta obra.

Aqui é o Quinto Evangelho! A circunstância de lugar, em Jerusalém, na Terra Santa, é evangelho. Na experiência desta realidade enraízo esta rubrica: Aqueles dias – estes que chegam em anual comemoração solene, os da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo que conduzem ao Dia maior, o Dia dos dias, o Dia que fez o Senhor raiz dos dias sem fim, o Dia da vitória sobre a morte – aqui. O Lugar é Palavra e a Palavra é Presença e a Presença é Encontro. Foi e é aqui!

Já hoje o vivi. Começámos à Hora, entre dezenas de soldados de metralhadora que fizeram, apressados – hoje foi mais um dia de tensão nesta cidade excessiva –, parte do mesmo caminho que percorremos lentamente, acompanhados pelo convite insistente à oração que descia dos minaretes; foram catorze estações, a Via Crucis, catorze vezes aqui. E este aqui diz a Jerusalém-mãe, nosso lugar, que nos envolve, como com um manto de salvação, que nos toma, como que nos engole nas suas ânsias de mãe que vive agonia de morte no sofrimento de ver dar a vida o Filho, descendência da sua realeza. Em Jerusalém, aqui, o Evangelho é como o ar – a gente respira-o com os olhos e ele dilata-nos o peito, visita cada uma das nossas células e vivemos. Em Jerusalém a Palavra é Lugar e o Lugar é Palavra.

Mas já antes da Via Crucis o havia sentido: na basílica do Santo Sepulcro, esta manhã, última sexta-feira da Quaresma, só neste dia, cada ano, celebra-se no altar da Mater Dolorosa. Esta celebração é a primeira que consta do programa da Páscoa Latina divulgado pela Custódia da Terra Santa, organismo franciscano que guarda e cuida dos Lugares Santos. Diz-se Páscoa Latina para distinguir da celebração da Páscoa dos ortodoxos, que este ano acontecerá uma semana mais tarde, uma vez que os nossos irmãos orientais seguem o calendário juliano.

O altar da Senhora das Dores encontra-se na capela do Calvário, à direita quem entra na basílica, subindo umas íngremes escadas. Nesta capela há dois lugares: o da Crucifixão e o da Morte do Senhor. Entre ambos, a altar da Mater Dolorosa. E depois é isto: em Jerusalém, o aqui também é tempo – o altar da Mãe, que estava

de pé junto à Cruz, aqui, situa-se entre a hora tércia e a hora noa, narra Marcos, o evangelista do ano. A ‘Hora’ de Jesus, diria João, o que aguentou aqui até ao fim, conheceu estes dois momentos marcantes: o da crucifixão, tércia hora, e o da morte, hora noa. O altar da Mãe está entre estes dois momentos. O aqui dito destes lugares diz a aliança entre espaço e tempo. Clero ou povo, todos éramos peregrinos aqui. E Jerusalém é o lugar por excelência de peregrinação, porque peregrinar é, precisamente, o modo de existir dos que vivem a aliança perfeita entre o tempo e o espaço, movendo-se neste como quem atravessa aquele e toca com as palmas das mãos abertas, muito abertas, a eternidade e continuamente as retira de volta ao tempo para marcar o espaço com as palmas das suas mãos abertas, muito abertas, livres, muito livres, como as crianças quando assinam, antes da escrita, presentes filiais.

Entre a hora tércia e a noa, entre o lugar da crucifixão e o da morte, aqui, um belo triste rosto de mulher português. Sim, a Mater Dolorosa do Calvário em Jerusalém, aqui, a Senhora das Dores do lugar e do tempo das dores de que é a Senhora, é um

rosto de mulher português. Certamente há, em Portugal, quem o saiba. Para mim foi surpresa completa.

É belíssimo o busto da Virgem Maria, uma espada cravada no peito e as sete dores inscritas no rosto, que se encontra na Capela do Calvário, aqui, entre o altar da Crucifixão e o da Morte de Jesus, entre a hora de tércia e a de noa, aqui, na basílica maior da fé dos cristãos; foi oferecido pela rainha D. Maria I, em 1778. A g

eneralidade dos guias não refere este dado – só o encontrei em um – ao contrário do que acontece com outras ofertas de reis e poderosos de todo o mundo. Mas, segundo atesta o franciscano irlandês guardião deste templo, Fr. Fergus Clarke, a quem pedi confirmação, edições mais antigas referem este facto. No mesmo sentido apontou Fr. Cristóforo Alvi, responsável do arquivo da Custódia, ele próprio figura de arquivo, franciscano de antiga cepa, barbas brancas silenciosas pelo meio

do peito: não se encontram os documentos da doação, mas ela é certa. Aliás, é sabido que a Rainha, justamente chamada ‘a Pia’, fez mais do que uma oferta ao Santo Sepulcro. Há dados referentes, por exemplo, a uma lâmpada de ouro, quatro anos mais tarde.

Tanto quanto

posso perceber, o busto da Virgem das Dores oferecido pela Rainha Pia, túnica vermelha e véu branco sob manto azul, diadema e auréola com sete estrelas, é a única escultura em madeira de todo o Santo Sepulcro. Neste aqui único de ícones e mosaicos, esmaltes e frescos e óleos sobre tela e madeira; de rendas e bordados sobre linhos e sedas e damascos; de baixos e altos relevos, em bronze, prata e ouro e lenhos vários, por um único lenho, apenas a imagem da Senhora das Dores, que a rainha de Portugal ofereceu, é uma escultura de madeira. E que bela é e quanto

beleza confere a este passo singular do aqui da passio de Jesus, Ele infinita paixão por compaixão, a Mãe, infinita compaixão pela paixão do Filho. Maria-Mãe, figura de Jerusalém: todos lá nascemos. A compaixão em pessoa, lugar amniótico de liberdade nova, figura da Igreja-Mãe. Vem beber-te aqui, Mãe-Igreja – parece que pede o seu silêncio compadecido, olhos descidos sobre o chão, de nos ver inebriados de outros cálices.

A sua mão esquerda cinge ao peito o manto azul, como se apertasse a si a túnica inconsútil do Filho, sem costura, de uma só peça, tecida de alto a baixo, metáfora da unidade da Igreja neste aqui espaço e tempo nuclear do Reino, sorteada entre soldados do Império. A mão direita esboça estático movimento apenas adivinhado.

O seu rosto materno diz serena e tristemente uma das sete palavras do Filho na Cruz, gravadas no bronze da grade sob o seu altar: consumatus est. Conheço aquele olhar, aquela serenidade triste, aquela boca entreaberta, a pronunciar um silêncio imenso e perplexo, porque os gritos e os gemidos há muito se esvaíram, impotentes. Conheço aquele rosto que encontrei aqui e que aqui me fez trazer os muitos rostos em que o vi, antes de aqui vir e o ver. Vi-o muitas vezes, no meu Hospital, rosto de mães que acompanharam filhos ao longo de longa doença e participam n

a sua morte. Não o rosto das mães órfãs de seus filhos por morte súbita. No rosto dessas ecoa toda a estridência do absurdo de se verem repentinamente roubadas a si mesmas. No rosto destas, como Nesta, aqui, paira suavemente a paz magoada do descanso de um cansaço muito antigo, como se a Via Crucis viesse de antes do princípio do mundo e fosse até ao fim do mundo e o filho fosse sempre o mesmo e a mãe também… como se teimar que ele vivesse é que fosse roubar o filho ao seu lugar, como se só perdendo-o é que o voltasse a encontrar, oferecendo-o… oferecendo-se… consumatus est.

Hoje, aqui, ouvir face a este rosto: Mulher, eis o teu filho – e, depois – Eis a tua mãe, foi diferente: foi Quinto Evangelho. Como foi diferente, também, entregar a voz às palavras antigas do Stabat Mater, que nos envolveram, aqui, na ambiência solene e decantada que só o canto gregoriano instaura.

Hoje, aqui, o Vigário Custodial, Fr. Artémio Vitores, da Ordem dos Frades Menores, disse que a Addolorata foi oferecida por Portugal no século XVIII. Portugal aqui. O Fr. Artémio contou que,

no incêndio de 1808, que devastou parte da basílica, a imagem esteve prestes a perecer, tendo sido resgatada in extremis pelo – cito em Italiano – «fratello sacrestano Fra José Bueno, il quale passò, abbracciato alla Madonna, tra le fiamme, senza esperimentare alcuna bruciatura. Madre e figlio avevano adempiuto le parole di Gesù sul Calvario! L’amore alla nostra Madre ci farà

superare le più grandi difficoltà! Basta affidarci a Maria!» (fiamme = chamas; bruciatura = queimadura; adempiuto = cumprido - vb cumprir). Foi aqui. E aqui é onde o amor trepassa o tempo, como a espada a alma, reconduzindo a existência toda a cada instante, recapitulando a substância da realidade, trino o uno e este trino.


Pequeno pormenor: o busto da
Mater Dolorosa portuguesa encontra-se espalhado por todo o mundo, uma vez que, em alto relevo, figura na pequena medalha da maior parte dos milhões de terços vendidos na Cidade Santa, que são o objecto mais adquirido pelos peregrinos dos cinco continentes para levar como sinal de lembrança para outros ou guardar como recordação para si. Se calhar, caro leitor, tem uma em casa. Santa Páscoa.Jerusalém é a nossa mãe. E é português o rosto desta mãe, aqui.

Jerusalém, 30 de Março de 2012

Pe. José Nuno

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