terça-feira, 10 de abril de 2012

Páscoa aos Quatro Pontos Cardeais

O círculo da luz solar oblíqua do meio da manhã vinda da clarabóia do Katholikon na Rotunda da Anastásis, da Ressurreição, incidia três passos adiante do Lugar da Aparição do Ressuscitado a Maria Madalena e aí, no ponto que o sol designava voltado a poente o primeiro diácono cantou às nações do Ocidente o encontro entre a que amou e o Amado vivo de novo, no Evangelho de João, ela a correr a dizer: vi o Senhor!; a procissão percorreu meia rotunda, atravessou a oração suspensa dos Coptas e outra vez João o discípulo amado ofereceu a narrativa que o segundo diácono cantou às nações do Sul, o surgir do Ressuscitado no meio dos discípulos, atravessando paredes e portas aferrolhadas por medo, que abundam sempre em Jerusalém: vimos o Senhor!, a segunda vez sinais da Paixão mostrados no Corpo Glorioso, para convencer Tomé o duvidoso; a procissão continuou e, desviando-se da Rotunda da Ressurreição, foi deter-se entre a Pedra da Unção e a Porta da Basílica e o terceiro diácono cantou às nações do Oriente, palavras de Lucas, a viagem desiludida dos dois discípulos que desciam para Emaús caía a tarde: é verdade, o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão Pedro!; a procissão voltou à Rotunda da ressurreição e diante das portas abertas da edícula do Santo Sepulcro o quarto diácono cantou às nações do Norte a narração de Marcos sobre a visita matutina das mulheres ao sepulcro à procura do corpo do Crucificado: não está aqui, ressuscitou!

O anúncio foi cantado em cada ponto cardial, como cumprindo o sentido da Santa Cruz de Jerusalém, a penta-Cruz, uma Cruz grande central e em cada ângulo definido entre os seus braços uma menor, quatro, a significar o evento pascal como acontecimento cósmico cuja notícia deve chegar ao mundo inteiro, a todas as nações dos quatro cantos da terra global globo que habitamos. Esta é a Cruz distintiva da Custódia da Terra Santa e de outras instituições ligadas a Jerusalém, como a Ordem Equestre dos Cavaleiros do Santo Sepulcro.

Esta era já a terceira volta, porque ao Terceiro Dia é que é a Ressurreição! As duas primeiras tinham sido muito lentas, parando a cada momento, a multidão apertando nas passagens mais estreitas, muitos os Coptas, chegados durante a celebração dos Latinos em alegre procissão de ramos; abria a Cruz patriarcal, duas barras horizontais, depois, belo alto e iluminado, o Círio Pascal, elevado pelas mãos do diácono, finalmente o Evangeliário, capas de prata, o Ressuscitado vitorioso em relevo.

Os franciscanos e os seminaristas do Patriarcado, os concelebrantes, o Patriarca e os seus auxiliares, cada um a luz entre as mãos, percorríamos a Rotunda da Ressurreição sob a cúpula majestosa, contornando a edícula, o incenso subindo, o canto erguendo-se e o órgão galgando as paredes e fazendo vibrar as emoções.

A grande celebração do Domingo da Páscoa da Ressurreição conclui sempre, na Basílica do Santo Sepulcro, com esta procissão ritual de proclamação dos trechos evangélicos mais significativos que contam a vitória de Cristo sobre a morte, aqui, no sepulcro escavado na rocha que o mármore da edícula esconde e protege. A Celebração eucarística tinha acontecido em frente à entrada da edícula, incrustada numa coroa sonora polifónica, os Gregos cantando no seu Coro, os Arménios na primeira galeria e os Coptas no lado de trás da edícula, os sininhos dos turíbulos soando continuamente, as vozes alteando progressivamente e aquilo que poderia ser impedimento foi desde o princípio enquadramento, ouvíamos a todos e todos nos ouviam e a Rotunda da ressurreição é mesmo isso, a casa de toda a gente e o erguer-se cónico concavo em três lanços de galerias da cúpula conduz a diversidade toda à unidade do destino aqui sempre o mesmo e apenas um.

Este pequeno edifício, no centro da Rotunda, sustentado de pé por vigas de aço, abriga o lugar do Túmulo de Jesus, oito metros e trinta por quase seis dividido em dois compartimentos, o vestíbulo, dito a capela do Anjo porque aí estaria sentado, em pedra que ainda se conserva, o mensageiro que anunciou às mulheres o que só a noite vira, quando vieram noite ainda, a aurora a anunciar o Dia, procurar Aquele que haviam deixado morto; a segunda câmara é a do Túmulo propriamente dito e para aqui entrar é preciso baixar-se abaixo de um metro e trinta e três, quanto mede a porta que lhe dá acesso, pedagogia para permitir olhar o Mistério do Lugar que só aos pequeninos se oferece, que os grandes não precisam da Morte e Ressurreição de Cristo para nada, bastam-se a si mesmos; a porta da câmara interior da edícula, onde está o Túmulo, faz-nos descer e também nos faz adoptar à partida a posição da veneração, que é inclinar-se perante o Venerado e também nos obriga a olhar o chão que é o que importa que nos lembremos que somos ao abeirarmo-nos do Sepulcro vazio de Cristo Morto-Ressuscitado e também, ao inclinarmo-nos, nos dobramos sobre nós próprios que é condição para que quem franqueia aquele Lugar se a olhe a si mesmo diante da potência regeneradora que a memória do Acontecimento Pascal oferece.

A Páscoa em Jerusalém é que se quer a si mesma não apenas a zelar santuários preciosos da memória da fé mas implicada na transmissão da mensagem que neles se preserva e comemora a cada tempo, a todos aos quatro pontos cardeais. E o mundo inteiro aqui converge neste Dia, precisamente aqui.

A chegar a hora de partir da Cidade da Páscoa, todos cá nascemos, a convicção de ter vivido um grande privilégio é mais profunda porque tanto quanto possível foram partilhados estes dias, como a Páscoa na Rotunda da Ressurreição, aqui, em Jerusalém, aos quatro pontos cardeais.

domingo, 8 de abril de 2012

6º passo - Sábado Santo - Deus a entrançar colunas de incenso

Ainda silêncio expectante em toda a Igreja Católica, na Basílica do Santo Sepulcro, o lugar comprovado do Sepultamento de Cristo, em Jerusalém celebrou-se a Vigília Pascal já neste amanhecer, estranho porque faltou o silêncio quieto e longo do Sábado Santo, aqui, precisamente aqui, exigência de Statu Quo, como se a fidelidade ao lugar, obrigasse à abdicação da fidelidade ao tempo.
Sem o prelúdio da expectação sabática – o sábado, o tempo sabático é sempre tempo de expectação porque de engendramento, de viver à espera e da espera, de educar a espera para o Dia do Senhor, para o Novo, para o Primeiro Dia em cada Semana, memória de amanhã e profecia do definitivo Primeiro Dia, Dia Único, aquele em que o Senhor virá e rasgará no horizonte a irrupção da eternidade – a Vigília matutina foi no entanto real, o benefício do espaço, aqui, compensou o prejuízo do tempo; foi ao Segundo Dia, pouquinhas horas depois de termos deixado o Senhor, portas fechadas da edícula do Túmulo santo, ungido e beijado jazente sobre a pedra fria de mármore, lençol branco de linho sem costura, como a túnica sorteada, a envolve-lO.
À entrada da Basílica, nesta manhã reservada apenas para quem vinha à Celebração, acendeu-se o lume novo, rito significativo aqui destituído de muita da sua profundidade simbólica, uma vez que o Círio, o Ressuscitado em ícone a envolve-lo dito sobre a cera – os ícones não se pintam, escrevem-se – é aceso a partir do fogo que arde junto ao Túmulo desde a celebração do Novo Fogo da Páscoa Ortodoxa do ano passado, porque a deste ano será oito dias depois da celebração dos católicos. Segundo uma Tradição de sempre, que o próprio papa Urbano VI usou como argumento para pregar a Cruzada, em 1095, esse Fogo vem directamente de Deus; passo a palavra à minha amiga Marie-Armelle Beaulieu, directora da edição francesa da revista Terra Santa, que estudou o assunto detidamente: «todas as chamas do Túmulo foram extintas e as portas da edícula fechadas foram seladas por uma camada de cera de abelha de dois ou três quilos. Previamente a edícula foi revistada de cima a baixo para assegurar que não existe nenhum meio de acender as candeias. Aí deve entrar sábado pelas três horas o patriarca ortodoxo, depois de ter dado três voltas ao edifício, seguido de monges e de padres implorando a Deus para realizar o milagre (…) no entanto não ele que acende as candeias mas o próprio Senhor. É o Milagre do Santo Fogo que se perpetua através dos anos (…) o patriarca na edícula, seguindo o ritual da celebração, toma a(s) candeia(s) acesa(s) pelo Senhor e distribui o Santo Fogo, começando a fazê-lo sair da capela dita da aparição dos anjos, vestíbulo do Túmulo propriamente dito, pelos dois orifícios laterais. Depois a multidão partilha-o e a igreja ilumina-se de milhares de velas ao ponto de ela própria parecer arder». Esta é a grande Noite anual na vida da Basílica do Santo Sepulcro. A importância deste rito é tal que, no aeroporto Ben Gurion, estão aviões à espera: vão levar o Santo Fogo a Moscovo, a Atenas, a Sófia, a Bucareste, capitais do mundo ortodoxo. Já se adivinha que esta Noite vem a caminho, as ruas de Jerusalém e a Basílica cheias dos brancos belos rostos largos louros, leste europeu, olhar azul, elas cabeça nobremente envolvida em véus.
A chama do Círio Pascal da Vigília dos latinos é colhida no Santo Fogo dos Gregos, no do próprio ano se a sua celebração da páscoa já foi, no do ano anterior, se ainda vivem a Quaresma. Parei diante deste gesto, que só hoje percebi ser assim, a tentar ver se o que se perde de um simbolismo não se ganha num outro simbolismo.
Aqui, a vida da Basílica é assim, com cinco diferentes caminhos eclesiais a cruzar-se e a convergir e a divergir, e a viverem paralelos e a encontrarem-se cordialmente, um Statu Quo mais vinculativo que os Dez Mandamentos para os Judeus, nossos pais na fé, que também hoje estão em Páscoa. Ainda hoje precisamente o Dia foi significativo. De manhã estavam só os Latinos a celebrar a sua Vigília. À tarde, porque todos os outros são visitados de hoje a oito pela Páscoa, todos a viver o Sábado de Ramos, ofícios e procissões belos e longos; a procissão dos latinos teve que esperar que os Gregos viessem à capela da Aparição do Ressuscitado à Virgem, porque aí está a Coluna da Flagelação que os Gregos também veneram, para poderem partir, rumo ao altar da Divisão das Vestes de Cristo, que é dos Arménios, pelo fim de cuja procissão depois tivemos que esperar para podermos cantar solenemente as Vésperas diante da edícula do Sepulcro e antes tínhamos interrompido os rituais dos Coptas com as três voltas redondas em torno da edícula, tendo eles, por seu turno, enriquecido as pausas do nosso Ofício com a cadência estranha dos seus cantares egípcios. Tenho pensado que Deus passa a eternidade a entrançar um cordão, um Deus cordoeiro de mãos hábeis como as da Mãe de minha Mãe, a avaliar pela sua trança na fotografia a preto e branco do Dia da sua Comunhão Solene, um Deus cordoeiro, sentado naquele lugar do céu onde chegam as orações de todos e Ele a receber eternamente os diferentes fios que nós cá fiamos e desfiamos em baixo e a entrança-los, para fazer um único cordão que depois nos lança e a gente sobe e havemos todos de nos encontrar, mais ou menos no sentido que dizia, no Testamento que escreveu para a eventualidade do martírio, Christian de Chergé, o Abade do Mosteiro de Santa Maria do Atlas, Tibhirine, Argélia, assassinado com os seus monges por terroristas fundamentalistas extremistas islâmicos: «Eis que poderei, se agradar a Deus, mergulhar o meu olhar no do Pai para contemplar com Ele os seus filhos do Islão como Ele os vê, totalmente iluminados pela glória de Cristo, frutos da sua Paixão, investidos pelo dom do Espírito cuja alegria secreta será sempre estabelecer a comunhão e restabelecer a semelhança, jogando com as diferenças». É!, um Deus cordoeiro, espero que a “banalidade” da profissão escolhida não fira ouvidos mais susceptíveis, que Ele disse-se a Si mesmo Pastor e Agricultor, não disse só Médico, se é que alguma profissão é mais digna que outra, em vez das pessoas que as exercem.

Muitas vezes tenho pensado neste mártir profeta contemporâneo pouco falado entre nós, li dele e sobre ele nestes meses e Jerusalém chama insistentemente pelo sentido do seu martírio, profeta morrido fora dela. Vinha a falar de relações entre igrejas e as palavras de Chergé são sobre diálogo inter-religioso, mas o que serve ao mais largo também abriga o mais próximo. E aliás creio com experiência do terreno agora, atrevimento de quem só esteve aqui dois meses, ignorância portanto, que o progresso do caminho do diálogo entre as Religiões do Livro filiadas em Abraão, depende da paz em Jerusalém.

É!, hoje, aqui, já celebramos a Páscoa da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, coração da fé dos cristãos todos da Basílica do Santo Sepulcro. Sim!, que a Ressurreição é artigo de fé, não da evidência científica, que essa fica pelo que a exegese, a arqueologia e a história dizem e estas nada dizem além da Morte e do Sepultamento de Jesus, aqui, neste Sepulcro santo – neste ponto, diria Pedro Lain Entralgo, o médico e filósofo espanhol que marcou o séc. XX cultural do país vizinho, a ideia é esta e é muito importante para evitar discussões inúteis e infrutíferas entre crentes e não crentes e entre uns crentes e outros crentes: só o penúltimo é certo, o último é e será sempre incerto, o que, trazido para a Páscoa de Cristo diz que a sua Paixão e a sua Morte são certas, sendo a Ressurreição, porque palavra sobre o último, incerta, a requerer a aventura maior do espírito humano que é acreditar para além da evidência, o que, trazido para o mistério da nossa humanidade nos coloca perante a morte a nossa própria morte, tema relevante neste dia suspenso junto ao Sepulcro de Jesus, e diz que a morte é certa basta ver, quanto ao além morte, é igualmente legítimo acreditar na ressurreição, como os cristãos acreditam, ou na aniquilação, como acreditam muitos agnósticos e ateus, ou na reencarnação, como acreditam os que se revêem em Tradições filosóficas e religiosas do Extremo Oriente.
É Páscoa. Devo terminar porque o Domingo começa poucos minutos depois da meia-noite com o Ofício que hoje deve ser bonito com os sininhos dos turíbulos orientais, treze – os Doze mais Paulo – a tilintar lembrando no acto de incensar que a Igreja é apostólica, fundada sobre os Apóstolos, todos com rosto no umbral das Portas do Santo Sepulcro, os sininhos a tilintar no tempo de pausa que o ofício dos Latinos deixar suspenso no ar incensado. Gosto de pensar Deus a entrançar colunas de incenso.
É Páscoa! Hoje já aqui, no fim da Vigília Pascal estranhamente ao fim da manhã, subia a rua de São Francisco, começaram os sinos a tocar, depois de dois dias calados. Entendi porque é que aquando da chegada de Saladino a primeira coisa que foi impedida foram os sinos. O seu repicar festivo diz a Páscoa de Nosso Senhor Jesus Cristo onde ela aconteceu, aqui, Jerusalém. O seu badalar oferece à Cidade uma vos diferente que diz uma realidade nova e surpreendente.

sábado, 7 de abril de 2012

5º passo – Sexta-feira Santa - Aqui, naquele Dia em que o Senhor morreu

São dez da noite desta Sexta Feira-Santa aqui, Jerusalém, acabo de chegar da Basílica do Santo Sepulcro. Aqui deixámos o Senhor, figurado numa belíssima escultura articulada do Crucificado. Infelizmente, por regras do Statu quo, não poderá aí permanecer até ao raiar do Domingo. Amanhã já cantaremos aleluias. Mas hoje, aos olhos das centenas de pessoas que participaram no Enterro do Senhor, aqui, Ele foi deposto no túmulo e as portas encerradas.

Antes, junto ao altar da Aparição a Maria Madalena, tínhamos iniciado um itinerário pelo escuro da Basílica, de castanho ou negro, conforme hábito ou batina, empunhando luz, perto de duas centenas de franciscanos e religiosos de muitas outras congregações, diocesanos também, vindos de todo o mundo. O silêncio impunha-se por si mesmo, como necessidade do espírito diante do Mistério representado e a multidão que seguia o Crucificado viveu-o. Um canto, ao longo de todo o tempo, recorrentemente, insistente o Miserere mei Deus, misericórdia de mim ó Deus, única palavra adequada do homem que contempla a Deus crucificado.

Detivemo-nos em vários lugares, impressionou a coluna dos Impropérios. Palavra proclamada, sempre em torno da Paixão, sempre o silêncio, sempre miserere e partíamos, levados pela melodia lenta e penitencial que entoávamos como se ela é que nos entoasse a nós, a nossa indigência, no escuro antigo da Basílica do Santo Sepulcro em Jerusalém, a comemorar a Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Subimos os difíceis, altos e gastos degraus que acedem às capelas do Calvário. Contemplámos os Actos da Crucifixão sob o lugar vazio do rosto da Mater Dolorosa do mosaico da parede do fundo – é verdade, não tem feições o vulto alto e vertical da Mãe, mãos postas sob o peito, de pé, enquanto, no chão, o Filho é pregado na Cruz e esta ausência de rosto provoca uma sensação de tragédia maior do que o pranto desatado de Madalena, prostrada junto ao seu Senhor e é como se o autor do mosaico da capela da Crucifixão quisesse dizer que o outro rosto, o da escultura oferecida pela Rainha D. Maria I de Portugal em fins de oitocentos, mesmo ao lado, quem vai para a Capela da Morte, expressasse tudo o que um rosto de Mãe pode expressar aqui.

E foi à Capela da Morte que o Crucificado foi levado. Detrás do altar de mármore dos Gregos, em frente dos ícones vestidos de prata, dita a Palavra, consummatus est, tudo começou. Até ali nada havia surpreendido. Mas agora, miserere, os diáconos despem as dalmáticas negras bordadas a ouro e aproximam-se, miserere, e passam um lençol branco belamente bordado sob os braços do Crucificado, silêncio, um toma uma tenaz e prende a Coroa de Espinhos e mostra-a a todos, silêncio, e pousa-a na larga bandeja cinzelada colocada no centro do altar de mármore, o outro diácono toma um martelo e bate três vezes na extremidade direita da trave horizontal da Cruz, com a tenaz retira o Cravo da Mão do Senhor, mostra-o claramente a todos, silêncio, coloca-o na bandeja e o Braço tomba, o primeiro diácono com o martelo bate três vezes na extremidade esquerda da trave horizontal da Cruz, toma a tenaz e retira o Cravo da outra Mão, mostra-o em volta, silêncio, coloca-o na bandeja e o Braço tomba amparado pela sua mão, o segundo diácono retoma o martelo, bate três vezes no pé da Cruz e com a tenaz retira o Cravo dos pés do Senhor, mostra-o elevado, silêncio, e coloca-o na bandeja, silêncio, o Corpo do Senhor é descido da Cruz, suspenso e tomado pelo lençol branco bordado, silêncio, colocado sobre o altar de mármore branco e a Palavra entoada em gregoriano por outro diácono faz surgir dos confins do Evangelho de João, José de Arimateia, o discípulo oculto Nicodemos, o que procurara o Senhor de noite, em segredo, o primeiro vai a Pilatos pedir o Corpo Morto e desce-O da Cruz, o segundo traz uma mistura de mirra e aloés e ambos o prepararam como devia ser entre judeus, hoje, aqui, já havíamos chegado abaixo, miserere, o Crucificado colocado sobre a Pedra da Unção, foi o Custódio da Terra Santa que deixou que lhe tirassem a rica capa de asperges negro e ouro, cingiu um avental de linho branco com fitas roxas, tomou uma por uma as quatro ânforas de prata que quatro diáconos traziam nas mãos e derramou, em gestos que inscreveu lentos no ar sob as lâmpadas sobre a escultura de madeira, olhando através dela para Aquele que nela se representa, os perfumes e as essências prescritas que se espalharam pelo ar, como se trazidas pelo fumo do incenso que chegava, como se Nicodemos e José de Arimateia estivessem a incensar o túmulo novo que havia no jardim onde Jesus havia sido crucificado, por causa da Páscoa dos Judeus que está a acontecer agora, hoje já Shabat, nesta noite em que o Custódio, deposta a imagem do Corpo Morto de Jesus Crucificado e descido da Cruz e preparado para a sepultura, incensou a entrada da edícula da Anastásis e fechou as suas portas, depois de ter visitado o que deixou jacente, aqui, no lugar onde, segundo a Tradição, Jesus foi sepultado.

Esta foi a única das procissões na Basílica em que as velas se extinguiram, ou sobrou pequenino coto, nos nossos dedos.

Antes do Enterro do Senhor, tinha acontecido, na capela da Crucifixão, propriedade dos latinos na Basílica do Santo Sepulcro, pela manhã, a Celebração da Paixão do Senhor como em todos os lugares do Orbe católico, mas em Jerusalém foi o único em que o Narrador, a dado passo, se deslocou à capela da Morte do Senhor, sete passos ao lado, atravessando o olhar suspenso no tempo da Mater Dolorosa, cantou: Et inclinato capite HIC tradidit spíritum e se ajoelhou sob o altar, enquanto todos ajoelhávamos, e beijou o centro da circunferência de prata que se abre sobre a pedra do Calvário, fendida pelo terramoto daquela Hora noa, como se vê, aqui, hoje, se visitamos a capela de Adão, exactamente sob a da Morte do Senhor, aqui.

A seguir, foi a Via Crucis, começámos a primeira estação nos pátios ao sol de uma escola muçulmana dos mais pequeninos, junto à Flagelação. Ao descer havia cruzado com dois grupos a fazer a Via Crucis, um junto à ajuda de Simão de Cirene, africanos vestidos de muitas cores, não sei de que país, mas falavam francês e, depois, no lugar da Primeira Queda, outro, asiático, a quem não percebi palavra nenhuma a não ser Jesus. Via Dolorosa acima, enquadrados por forte aparato de segurança, cercados de vendedores e compradores, peregrinos e/ou turistas – quantas vezes tenho pensado nestes dias, aqui, na chave proposta por Gilles de la Taille, de peregrino a turista, para interpretar a realidade circundante, a procura do filme e da fotografia em vez da procura da vivência do espírito dos Lugares, como se lembranças para levar, apenas contassem as evidentes e comprováveis registadas tecnicamente, em vez da impressão interior profunda e da oração – até chegarmos outra vez ao mesmo Lugar, o Santo Sepulcro. Catorze vezes ouvimos, nas quatro línguas usadas, aqui, porque aqui foi, uns Actos segundo a Tradição, outros segundo os Evangelhos, alguns comprovados sem qualquer dúvida pela arqueologia, Jerusalém, Quinto Evangelho. Uma multidão vinda de todas as nações participou, muitas religiosas, as filhas de Madre Teresa destacando-se na brancura e azul dos hábitos, elas que tão bem conhecem estas ruas, visitadoras diárias que são dos doentes dos Bairros Cristão e Muçulmano; depois da Condenação e da Imposição da Cruz, Quedas e Encontros, a Primeira e a Segunda e a Terceira, a Mãe, Simão, Verónica, onde as Irmãzinhas de Jesus, pintam ícones, elas, as discípulas de um dos mais veros ícones de Jesus da modernidade, Charles de Foucault, as Mulheres de Jerusalém, que bem precisam de chorar por seus filhos, pensei há umas semanas atrás, quando, junto à Porta de Damasco reparei que os brinquedos mais expostos nos vendedores árabes eram metralhadoras, já vários meninos, o último foi no Domingo de ramos, ‘dispararam’ sobre mim e, passos adiante, no mesmo dia, estávamos na antevéspera da Festa do judaica do Purim, fui encostado à parede para dar lugar a um desfile de crianças de um infantário mascaradas, muitas delas de soldados empunhando metralhadoras, apetece parafrasear Hannah Arendt, a banalidade da metralhadora; e a Via Crucis continua, agora de novo na Basílica, capelas do Calvário, Jesus despojado e crucificado e morto e descido da Cruz e descemos e, na Rotunda da Anastásis, concluímos junto ao Túmulo Santo.

Ainda antes de descermos para o nocturno Enterro do Senhor, tínhamos vindo, rua de São Francisco abaixo, polícias e kawas à frente, sempre à Basílica, rezar o Ofício de Trevas, sempre diante do Sepulcro, onde deixámos o Senhor sepultado, hoje, perto das dez da noite, aqui.

4º passo – Quinta-feira Santa - O Senhor, aqui, é mais realidade

Subi ao terraço mais alto da Cidade, quase sala de cima da velha Jerusalém, o do Convento de São de Salvador, minha casa desde que cheguei. Aurora ainda, as nuvens baixas inflamadas entre alaranjado e rosa, dentro de muros um silêncio já claro, silêncio de altar, a oriente, já iluminado ostensório, o Monte das Oliveiras, e emergindo lento e solene sobre ele da noite, como cósmica hóstia luz e ouro, o sol nascente, vindo donde Domingo, entre ramos e alegria, viéramos, porque o Senhor, triunfante, por aí viera, entrando em Jerusalém para a Páscoa.

A paz deste momento inicial foi prelúdio de um dia impossível de dizer.

Basílica do Santo Sepulcro, às oito horas, entrada do Patriarca trazido pela Custódia da Terra Santa. Começa a Celebração que reúne numa única a Missa Crismal e a Missa da Ceia do Senhor, logo pela manhã, estranha situação. O Tríduo será todo assim. Amanhã, logo pela manhã, celebraremos a Morte do Senhor e no dia seguinte, logo pela manhã, celebraremos a Vigília Pascal, roubando à Páscoa a espera expectante do sábado.

Porquê? A história de Deus connosco continua a ser a de sempre, uma história de paradoxal sujeição Sua aos nossos limites, quadratura impossível, água e terra e fogo e ar, da plenitude do círculo que só a loucura divina alcança; aqui os limites têm um nome que até no dizer-se incorrectamente diz como seria desejável crescer dele, o Statu Quo. É este documento que espartilha a celebração do Tríduo Pascal na Cidade da Páscoa. E este ano, pela primeira vez, o Tríduo Pascal é celebrado com um ritual, aprovado por Roma com carácter definitivo, de acordo com o espírito da Reforma Litúrgica. Vale a pena contar: o chamado Statu Quo foi imposto pelo Império Otomano às Igrejas da Basílica do Santo Sepulcro, também de Belém e do Túmulo da Virgem, em 1852, consagrando a situação que vigorava desde 1767. Ao longo dos séculos, nunca foi possível separar a vida deste Santuário dos acontecimentos da história mundial, dos interesses da Europa colonizadora nomeadamente e da consequente instabilidade política que a Cidade de Jerusalém sempre conheceu. Os Estados imiscuíram-se frequentemente, por iniciativa própria ou a pedido das Igrejas, muitas vezes ao serviço de interesses estratégicos das potências.

Formalmente, na Basílica do Santo Sepulcro estão, para além da Igreja Católica Romana, a Igreja Ortodoxa Grega e os Arménios e também os Coptas e os Siríacos. As disputas, nomeadamente territoriais entre elas na Basílica, foram uma constante, particularmente entre católicos e gregos nos séculos XVII e XVIII. O Statu Quo determina muitos aspectos: a posse dos espaços na Basílica, o horário e a duração das celebrações, o itinerário das procissões e como se devem fazer, o uso de incenso, de velas, as leituras e o canto. Para a Igreja Católica isto significou ter de cingir o Tríduo Pascal às linhas de uma prática litúrgica muito antiga, impossibilitada de adaptações e de toda a evolução litúrgica que se registou entretanto. Já desde 1955, com o Papa Pio XII, quando mudou o modo católico de celebrar a Páscoa que mudanças eram procuradas no Santo Sepulcro, mas só em Outubro de 2011, ao fim de um longo percurso, foi aprovado o novo Ritual, já em experiência desde fins da última década do século passado.

Hoje, logo de manhã, aqui, celebramos a Ceia do Senhor à hora da Missa Crismal, juntando ao Lava-pés a renovação das promessas sacerdotais, a consagração do santo Crisma e a bênção dos Óleos dos Catecúmenos e dos Enfermos. Longa Liturgia da Palavra, que muitas eram as faces do Mistério a contemplar. O Patriarca trouxe a história até à Entrada do Sepulcro: «Nós somos prisioneiros do ódio, da desconfiança e do medo entre os homens», diz, em nome do seu povo que habita a própria Cidade Santa, os Territórios da Autoridade Palestiniana, Israel, a Jordânia e Chipre; continuou: «para nós que vivemos sobre esta Terra Santa, Cristo continua a sofre nos membros do seu corpo místico; nós que somos confrontados cada dia com a falta de liberdade e paz, com o vexame, os sofrimentos e mesmo o martírio. Estas condições de vida ferem-nos no mais profundo da nossa alma. Nós temos tanta fome e sede de justiça e de paz; nós só sonhamos levar uma vida normal».

Após, a veemência do Bispo ainda a ecoar na Anastásis, o gesto maior do contraponto divino à história do homens, a parábola do Lava-pés, o modo joanino de dizer a instituição da Eucaristia. Filhos de Francisco, guardiães desta Terra, descalçam as sandálias que palmilham estes lugares desde que Francisco aqui veio, na sua cruzada alternativa de 1219, e o Patriarca, servo, inclina-se diante de cada um dos doze e a água corre da jarra sobre os pés nus. Anormal mas ideal, este horizonte para renovarmos as promessas sacerdotais, as duas centenas de presbíteros que estávamos, experiência única esta de o fazer aqui, colocando o Acto nas mãos do Patriarca da Igreja-Mãe Jerusalém, donde Pedro partiu para Roma; aqui, diante do Sepulcro Santo aberto a ilustrar maximamente o sentido oculto, como no segredo a passagem da Morte à Vida que só ele viu, dinamismo pascal de passagem que a consagração do Crisma das unções sacerdotais, proféticas e reais, tal como, antes, a bênção do óleo dos já a viver o risco-de-vida na doença ou os ainda a preparar-se para a vida-outra dos filhos de Deus, os catecúmenos, que aqui encontra o seu lugar originante, naquela porta aberta na edícula do Sepulcro: todos lá nascemos, como narra a longa evocação da história da salvação para a consagração do Crisma a atravessar permanentemente as portas antigas dos muros de Jerusalém, a criação, o dilúvio, pomba e ramo de oliveira, Moisés e Aarão, o sacerdote, David, o rei e, na aurora, João, o Baptista, profeta, até chegar, definitiva travessia, à Entrada do Sepulcro aqui.

E a Eucaristia, aqui, a Anáfora I, os sacrifícios de Abel e Melquisedeque, a Virgem Mãe e José seu esposo, os apóstolos e tantos mártires, aqui, per ipsum et cum ipso et in ipso, Cidade-altar. E, de novo, o apelo da ressurreição, incenso, muito incenso, a Rotunda a fazer-se itinerário circular, luz entre as mãos. Três voltas redondas, que a quadratura é humana, mas Deus circular plenitude, a última volta a alargar-se à Pedra da Unção, o Patriarca, chegado ao peito, entre as mãos, as mesmas que haviam lavado pés, o Corpo Eucarístico; e as palavras antigas quase como as portas da velha Cidade, mas não tanto, porque cantam já a chegada da nova Jerusalém, Lauda Sion Salvatorem, Pange língua glorioso corporis mysterium, Adoro Te devote latens Deitas. Incenso, outra vez muito incenso diante da Presença, a elevar-se aos três patamares de galerias da cúpula, como as palavras que chamam os sentidos à reverência, Tantum ergo Sacramentum. Santíssimo colocado no Sepulcro, envolvido em flores, damascos, linhos e velas e silêncio adorante, silêncio que fica… que as portas da Basílica continuam cerradas após a Celebração, a Basílica hoje exclusivamente dos latinos, como aqui são chamados os católicos.

Não é a presença de Cristo que, aqui, é mais real. É Cristo que, aqui, é mais realidade.

Foi o dia inteiro a comprová-lo.

Princípio da tarde, no Convento de São Salvador, o Vigário Custodial acolhe cordialmente os representante das Famílias Nusseibeih e Joudneh, muçulmanos que há séculos são os detentores da Chave da Única Porta da Basílica do Santo Sepulcro, emparedadas as outras existentes. Neste dia, vêm à Custódia, numa visita simbólica após a qual o Vigário, com alguns franciscanos mais, com a chave na mão, única vez em cada ano, desce até à Basílica, onde a devolve, para que a Porta seja solenemente aberta, com o complexo cerimonial deste dia.

Pouco depois, no Santo Sepulcro, Ofício Divino e adoração eucarística, o Senhor num belíssimo Tabernáculo de prata octangular, como se estivesse guardado pelas bem-aventuranças, só que estas são ouro, o ouro dos podres, pode dizer-se a pensar na inversão do mundo de amanhã.

Princípio da tarde também, peregrinação ao Cenáculo, onde só duas vezes por ano, hoje e Pentecostes, se pode vir celebrar, ouvimos: o nosso Salvador aqui celebrou a Ceia pascal instituindo o memorial da sua Páscoa, aqui lavou os pés aos apóstolos e deu o Mandamento Novo, três momentos de um ritual todo simplicidade, adolescentes da paróquia de Jerusalém crismados no próximo Pentecostes, que também aqui aconteceu, tal como as aparições após a ressurreição, de pé nu para a agua pelas mãos do Custódio da Terra Santa, numa Sala de Cima apinhada de gente de todas as nações, um calor intenso, as guitarras dos seminaristas franciscanos a sustentar as vozes no louvor, única acto da alma aqui possível.

A peregrinação continua, cidade além, que os franciscanos visitam cada ano neste dia duas comunidades irmãs com quem os sobressaltos da história no Cenáculo estreitou a relação: em 1551, expulsos deste Lugar santo, são acolhidos pelos Arménios – a visita é à sua Catedral de São Tiago Maior, aqui decapitado segundo a Tradição, edificada sobre o palácio de Caifás, onde Jesus foi julgado pelos sacerdotes e negado por aquele a quem entregou o primado; após a destruição de Saladino, quem ficou a viver nas ruinas do Cenáculo, mantendo viva a memória, foram os Siríacos Ortodoxos, visita seguinte.

As ruas de Jerusalém a pejar-se progressivamente de gente, gente e mais gente, são romaria quente e no silêncio temperado da Basílica do Santo Sepulcro, nas entranhas do mundo, pousado sobre o Lugar onde esteve o Corpo Morto e donde se ergueu, Ressuscitado, está o Corpo Eucarístico e oferece-se-lhe a Adoração, radical e total convergência nEle.

À noite, a Igreja das Nações, assim de diz de Getsemani, foi-o. Não cabia mais ninguém quando o Custódio, depois de beijar a Pedra da Agonia, aqui, aturou sobre ela, gestos de semeador, pétalas de rosa cor de sangue. E ouvimos a Palavra, em sete línguas –o evangelho cantado em árabe, língua que para dizer Deus diz Ala, assemelha-se estranhamente ao canto do convite à oração que, cinco vezes por dia chama os muçulmanos à oração – contar a predição da negação de Pedro, depois a Agonia de Jesus no Horto, depois a sua Prisão. A Pedra foi incensada, muitos ficaram em oração pela noite dentro, outros juntaram-se aos muitos que estavam cá fora e partimos pela noite fora em procissão de velas da paróquia de Jerusalém, tudo dito e cantado em árabe, a lembrar também estranhamente o aramaico que ouvimos na Paixão de Mel Gibson e a sentirmo-nos ainda mais aqui por essa semelhança; o nosso destino, atravessado o Vale da torrente do Cédron, a Igreja erguida sobre as lágrimas de Pedro, no lugar, aqui, em que, segundo a Tradição, o Apóstolo chorou a sua Traição.

Ao regressar, na sala de cima da manhã, o Terraço de São Salvador, a luz da noite era intensa, a lua quase cheia, quase redonda a lembrar a adoração que decorria, sob aquelas cúpulas que brilhavam, quase ao alcance da mão, as que cobrem o Lugares da Morte e Ressurreição do Senhor, aqui.

terça-feira, 3 de abril de 2012

3º passo - Sangue e palmas

Aos quarenta minutos deste Domingo, precisamente aos quarenta – tantas coisas são quarenta nas coisas da fé, como o Êxodo e a Quaresma, e todas apontam para Aquele dias, aqui, esta semana que se inaugura, na Basílica do Santo Sepulcro, aos quarenta minutos do Domingo de Ramos! – iniciámos a celebração da vigília do Domingo.

Tínhamos descido a pé, em cortejo silencioso, precedidos pelo Custódio da Terra Santa, Fr. Pierbaptista Pizzaballa OFM – Ordem dos Frades Menores, os primogénitos da criação de Francisco, o que tão sofregamente bebeu do Cálice pascal que o seu corpo mereceu em vida os sinais da Morte do Senhor –, ao ritmo sonoro e certo dos Kawas, a rua de S. Francisco e, antes de entrar na da Via Dolorosa, virámos à direita, até encontrarmos a de Santa Helena, à esquerda, em degraus, que leva a uma das entradas do adro fronteiro às Portas da Basílica. Não há, no mundo, adro tão adro como este, sempre, mas particularmente nestes dias, quando a Páscoa já chega; faz lembrar, qualquer que seja a hora do dia ou da noite, uma lembrança de adro de Igreja de Diniz, entre os Fidalgos e a Morgadinha. Mas, aqui, a aldeia não é de província; aqui bate o coração do mundo e o mundo vem aqui depor o coração. A Praça de São Pedro, na Roma dos sucessores do Apóstolo, essa sim, na sua dimensão e imponência, percebe-se província, paradoxalmente, se comparada com este pátio exíguo, arquitectonicamente pobre, com dois acessos, ouso dizer, miseráveis, que se não sabemos nem damos por eles, mal iluminado, paredes altíssimas por todos os lados, uns degraus irregulares e desiguais e duas portas à nossa frente, uma emparedada e outra aberta. É!, logo no adro a Basílica do Santo Sepulcro nos obriga a perceber que aqui nos encontramos nas entranhas da história, que é visceral o Mistério a penetrar, que o lado de dentro das coisas é que é a substância da realidade.

Entramos ordenados e dirigimo-nos à capela da Aparição, contornando a Pedra da Unção e atravessando a Ressurreição – é!, a Anastásis, diz-se em grego – passando em frente da edícula do Santo Sepulcro. A este espaço imenso e circular, que na tarde sábado já havíamos percorrido três vezes, também se chama a Rotunda. Saindo dela e seguindo em frente, atravessámos o Lugar do altar da Madalena e chegámos à capela da Aparição a Maria, nas mãos dos franciscanos já desde o século XIV. Aqui se situa o seu coro, onde cada dia e cada noite celebram o ofício divino. Aqui se conserva o Santíssimo Sacramento, numa estreita e altíssima abside, dentro de um globo como se fosse uma Presença entranhada no mundo, sobre um mosaico não figurativo, apenas um cosmos azul pontilhado de ouro e brilhante, brilhante. Por esta capela se acede ao convento dos franciscanos que servem o Sepulcro.

E então, aos quarenta minutos do Domingo de Ramos, inicia-se a Vigília nocturna.
O invitatório é uma chamada universal à alegria, com as palavras do salmo 99: alegre-se no Senhor a terra inteira; Pange língua, cantamos no hino o triunfo do Crucificado. Segue-se a salmodia, intercalados os cantos por largo compasso de silêncio que culmina em oração, entoada pelo Custódio, que preside; as Leituras próprias, da Epístola aos Hebreus e de Santo André de Creta, os respectivos responsórios e, depois, uma antífona que nos transporta no ondeado nocturno da melodia gregoriana ao combate de Getsemáni: Pai, se este cálice… e abre o espaço a três cânticos do Testamento Antigo, que nos levam a Jeremias e às lamentações na tribulação e a acolher, de Ezequiel, a promessa de um coração novo e de um espírito novo.

Nas pausas, ouvíamos a Vigília dos Gregos, a vinte metros, no espaço magnífico do Katholikon, originalmente coro dos cónegos, hoje espaço exclusivo dos nossos irmãos ortodoxos gregos, um mosaico do Pantocrator (Senhor de tudo, à letra, em grego) na cúpula, um hemisfério de mármore branco na sua base, a que se chama o ‘umbigo do mundo’. Tinha que ser aqui. Chegava até nós o som dos sininhos que distinguem os seus turíbulos dos da Igreja latina e é como se o som da sua persistente incensação suscitasse nos nossos silêncios entre os salmos a elevação e o perfume do incenso.

E… é!, a Rotunda convoca-nos de novo, a lembrança circular da tarde que vivêramos ainda viva e de novo chamados à vida, a entrarmos na Ressurreição – Anastásis, no grego, digo outra vez a fim de não esquecermos a palavra na língua que primeiro a passou a escrito, para que tal boa notícia (evan-guélion, em grego também) não se perdesse ou se diluísse na imaterialidade da mensagem apenas dita; é que, sabemos bem, quem conta um conto aumenta um ponto, e neste caso, nada se poderia aumentar sem estragar, porque o conto acabava já numas reticências tão longas, abertas e profundas como a própria eternidade de Deus. Talvez por isso, o caminho da transmissão oral à fixação escrita da Vida, Morte e Ressureição tenha começado antes de mais pela Morte e Ressurreição.

Como havíamos feito todas as noites de sábado ao longo da Quaresma, entoámos o benedictus – Bendito o Senhor Deus de Israel que visitou e redimiu o seu povo – cantando aleluias, que aqui nunca cessam, em movimento redondo em torno do Santo Sepulcro, velas na mão e uma luz belíssima a crescer, a crescer, dentro da noite, até ser maior que a noite, que todas as noites, os diáconos balouçando dois turíbulos, caminhando em frente do Custódio, que erguia acima de si um Evangeliário muito belo, o órgão, cujos tubos se encontram instalados nas galerias superiores à volta da Rotunda, invisíveis, despertava para o invisível, crescia subia as paredes verticais galgava as alturas rolava na concavidade imensa da cúpula e vinha, mansamente, um respeito sem fim pela nossa debilidade, entregar de novo às nossas vozes o espaço do tempo de mais uma estrofe - graças ao coração misericordioso do nosso Deus que das alturas nos visita como o sol nascente –; agora expectantes e imóveis, após a última volta em torno do Sepulcro, porque o Custódio, evangeliário encostado a si, baixou-se e entrou na edícula, e a música fazia estremecer longamente o ar interior enquanto esperávamos, como se a noite dos tempos se abrisse e dissesse que não fora senão a espera de que alguém saísse daquele Túmulo, e a indigência cósmica, esse tremendo privilégio do homem, hesitasse entre o sacrílego e o ansioso nas notas que atordoavam as pedras e o ar que respirávamos; e subitamente os diáconos surgiram às arrecuas incensando, rasgando o caminho do Sepulcro até nós e o Evangeliário, boa nova, erguido de novo, mais alto agora, pelas mãos servas do Custódio, emergiu oferecendo a sua beleza como gramática ao Verbo e as notas do órgão que respirávamos intimamente, como se a música nos quisesse ensinar a ouvir intimamente, vieram entregar-nos a última estrofe do Cântico de Zacarias – para iluminar os que jazem nas trevas e nas sombras da morte e dirigir os nosso passos no caminho da paz.

Já na capela da Aparição, agora mais, ainda entoámos o Gloria Patri e, depois, com voz também serva, o Custódio cantou a Manhã da Ressurreição no Evangelho de Marcos. Estava feito. Rezámos louvando muito Jesus Cristo, chamando-Lhe, em latim, todas as coisas belas que o amor ao longo dos séculos inspirou aos pequeninos e aos pobres e suplicando por todos e por tudo, fomos abençoados e saímos para voltar, cinco horas depois.

Cinco horas depois, é difícil de contar. Procissão para ir chamar o Patriarca. Entrada sem cerimónia do Patriarca Fouad Twal na Basílica. Paramentação vermelha. Deslocação para junto do Sepulcro. Canto de antífonas apropriadas. É grande a multidão, muitos os padres. Patriarca chega à entrada de edícula. Dentro já tinham sido colocados muitos ramos de oliveira e palmas. Patriarca situa-nos entre o fim da Quaresma e o início da Semana Santa, com as palavras do Missal. Diácono proclama episódio da Entrada Triunfal, Evangelho de João. Patriarca diz a longa e evangelicamente pormenorizada oração de bênção dos ramos; hissope na mão entra no sepulcro, demora e sai, asperge os ramos que muitos traziam já. Um a um os padres aproximam-se do Patriarca que a cada oferece uma esguia e fina palma, retirada pelos fâmulos da edícula do Sepulcro. A toda a assembleia são dadas palmas e ramos de oliveira. E, é!, o apelo da Ressurreição é forte e voltamos à Rotunda que Ressurreição se chama e nos chama. A Jerusalém dos cristãos é concêntrica aqui, como o é o cosmos e a história, como o são, livremente, os destinos pessoais.

Mais uma vez, tratava-se de cumprir três voltas, o órgão elevava-se levando o incenso, as vozes cantavam e as palmas, as palmas muitas, os padres, anciãos (em grego, presbyteros) aqui pueri hebreorum cum ramis palmarum (latim, crianças dos hebreus com ramos de palmeira) alinhados quatro após quatro e mais quatro após quatro, muitos, vestidos de sangue, multidão com a multidão para que são, irmanados, todos plebs hebrea cum palmis (latim, povo hebreu com palmas) e ramos de oliveira a chamar por paz e os padres revestidos do sangue da casula, acenando as palmas e as palmas dançando no ar sagrado em torno do Santo Sepulcro do Deus mártir às mãos dos homens para dar testemunho garantido com sangue sobre a verdade de Deus e do homens, do Deus Homem Morto aqui e que aqui voltou à vida, as palmas proclamando que o martírio é loucura, que só os loucos são mártires, freneticamente agitadas não por vento mas por vontades, dançando, dançando, as vontades cantando, as palmas dançando, o vermelho do sangue sobre nós, as palmas da loucura do martírio nas palmas das nossas mãos e o tempo, sob a majestade da cúpula donde a luz desce clara, o tempo progredindo linear rectilíneo mas em círculos concêntricos, cada passo novo de uma novidade nova que as palmas, como se proclamassem a loucura do martírio, profetizam nas palmas das nossas mãos, das nossa mãos ungidas e, surpreendentemente, à terceira volta a procissão desvia-se, os padres as palmas nas palmas ungidas das mãos, e a procissão vai contornar a Pedra da Unção do Corpo Morto do Deus vivo, a loucura do martírio que as palmas lembram dançando no ar e nas palmas das nossas mãos ao ritmo da liberdade. Hossana! Hossana! Hossana!

Até que pára diante da entrada do Sepulcro. O altar é aí colocado. Kyrie eleison (do grego: Senhor tente piedade). Palavra, Isaías a narrar a aprendizagem discipular da escuta que é como quem diz a obediência e, narrada aos Filipenses, a Kenose (do grego, também: esvaziamento) do Senhor, por isso exaltado. E a Narração da Paixão, em S. Marcos. Cantada. Em latim, nas mãos de todos em mais cinco línguas. O esplendor da Beleza, decantado e limiar sacrifício puro da voz ao Verbo, criatural humildade. Encostados à edícula, na sua capela do outro lado, os Coptas, que haviam interrompido a sua liturgia do V Domingo da Quaresma para permitir a procissão dos Latinos já em Domingo de Ramos, tinham retomado e a melopeia triste do seu canto penitencial enchia de lamento as pausas para respirar dos cantores da Paixão; às vezes, parecia que os trinados do lamento do seu solista, elevando-se, se inscreviam como iluminuras sobre a linha simples e depurada do Canto da Paixão, o esplendor da Verdade, num silêncio suspenso das alturas da abóboda por onde o luz nos chega e se faz crer, aqui, tempo e espaço, indefectível.
Silêncio, de novo oração por todos e por tudo, polifonia lenta embebida nas dores do mundo o cálice da amargura entoada pelos seminaristas da Custódia. Liturgia Eucarística. Silêncio de novo, vazio habitado carregado de Presença como a claridade hoje do Sepulcro, a fundar na luz os dias a chegar. Ritos finais.

Por S. Francisco acima, Santo Agostinho, como Francisco um convertido, subia comigo. No convento de São Salvador, nos poucos minutos antes de descer ao refeitório onde a Comunidade me faz sentir um seu, após quatro horas – que horas!, mil anos nos átrios – na Basílica do Santo Sepulcro, bailavam entre palmas e claridade no meu espírito as palavras de Agostinho apenas lembradas, talvez assim Ó Beleza, tão antiga e tão nova, tarde te amei Quão tarde te conheci, Jerusalém! E ainda havia mais Jerusalém para viver.

Princípio da tarde, rumo a Betphagé. De todos os lados vinha gente, gente e mais gente, gente de todas nações, gente de todas as idades, idosos, bengalas, pelo braço de filhos e crianças aos ombros de pais, gente na força da vida e gente no tempo da promessa de chegar, gente muita gente, uns trajados de cerimónia – as crianças das paróquias da Terra Santa, que belas!, na solenidade do vestir – outros autênticos montanheiros, displicentes turistas ou praticantes de algum desporto, ocidentais e orientais, do hemisfério norte e do hemisfério sul, feições, tom da pele, tipo de cabelo, ninguém faltou, era de facto um povo de todas as nações, parecia o Apocalipse, parecia que o claustro claro da Igreja do Pater ali tão perto, onde havíamos de passar, tinha vindo a Betphagé, trazendo os orantes de cada mosaico – na Igreja do Pater, no cimo do Monte das Oliveiras, existe um painel de azulejos com o Pai Nosso em cada língua da terra –; cada grupo dizia-se a si nas cores dos bonés, das camisolas ou dos lenços em volta do pescoço, dos hábitos religiosos, conservadores e progressistas, com tradição ou recém-chegado à vida da Igreja, movimentos de esquerda e de direita e de centro, para quem saiba o que isto seja, escuteiros e mais escuteiros, doze grupos cada um sua fanfarra, os bombos grandes eram maiores que alguns lobitos e avezinhas, bandeiras e estandartes, cartazes e faixas, gente, gente só a começar e já em grupos, palmeiras altas fortes e tontas e palmas baixas e finas e loucas fugidas da Basílica e palmas outra vez, destas, algumas autênticos monumentos de arquitectura erguidos por dedos hábeis na arte de entrançar – que é uma das mais importantes de aprender, Deus o diga aqui – e muitos muitos ramos de oliveira e flores, muitas flores de muitas cores, de todos os nomes e iguais com nomes diferentes nas línguas diferentes dos que as traziam.
Ia começar a Procissão dos Ramos, de Betphagé para Jerusalém, pelo Monte das Oliveiras, passando ao Getsemáni, muito importante, dizia-me o padre Pizzaballa, Custódio, a única grande expressão pública, externa dos cristãos em Jerusalém. Num palco com bastidores abertos a nascente, ele e o Patriarca, o Bispo Melquita, os Bispos auxiliares do Patriarcado e os seminaristas menores já batina e faixa vermelha e os maiores. Duas propostas de oração para uma procissão que também seria momento de prece: paz e justiça na Terra Santa e em todo o mundo e conversão pessoal dos corações. O Evangelho de Marcos a comemorar. A organização – difícil!, esforçada!, só Deus sabe! – da procissão.

O movimento inicia-se lentamente na luz branca da tarde, céu azul, sol intenso. Não se percebia porquê tanta lentidão até que, no primeiro alto do percurso, foi possível ver: era mesmo muita gente, uma multidão compacta, obrigada a abrandar quando o caminho se estreitava. Era uma festa, a mais extraordinária manifestação de alegria que me lembro ter visto. Instrumentos musicais de todos os tipos e de todas as culturas, desde batuques e afins africanos, às guitarras dominantes entre os sul-americanos, europeus com violinos e flautas, as guitarras eram mesmo muitas e transversais, como as pandeiretas, chocalhos, e muito mais, mas principalmente vozes, afinadas ou desafinadas, graves ou agudas, fortes ou fracas, em tantas línguas: Que alegria quando me disseram vamos para a Casa do Senhor, os nossos passos já te vêem, ó Jerusalém!
Nos terraços e janelas e varandas e pátios, nos passeios onde os havia ou na beira da estrada quando cabiam, muitos a ver, muçulmanos a maioria, que atravessávamos Jerusalém Oriental, muitas mães e muitos muitos filhos a ver passar a procissão – o andamento e o calor humano lembravam Villaret e a nossa aldeia, que Deus a proteja, aqui de facto uma Jerusalém aldeã – descontracção evidente no rosto, alguns vi-os bater o ritmo dos cânticos com as mãos ou estalando os dedos.

Mais de duas horas tinham passado. A alegria crescia, sem esmorecer. As paragens eram momentos para cordões em dança aos círculos, como se a edícula estivesse ali, os mais jovens pulavam entre aclamações, parecia um salmo de louvor ao vivo. Muitos grupos já se entrelaçavam, já muitos rostos se tinham aberto irmãmente a desconhecidos mas irmãos. Os meios de comunicação social em directos e chamam para entrevistas. Rosários a correr entre os dedos, há tempos de oração, nesta procissão de procissões, cada cinquenta ou cem metros vai na sua e todos vão na mesma, sem uma instalação sonora que materialize a unidade entre as gentes ao longo do itinerário. Ao mesmo tempo, daquele quilómetro e meio de multidão, poderiam erguer-se catorze cânticos diferentes ou mais.

Getsémani, tocam os sinos jubilosamente solenemente longamente a acompanhar-nos até à Porta dos Leões, dita de Santo Estêvão, porque perto terá sido apedrejado o primeiro dos mártires cristãos: Lauda Sion! Já várias vezes atravessara esta porta, ao longo destas semanas. Mas só hoje me dava conta que entrava em Jerusalém e do que é entrar em Jerusalém.
Quase três horas haviam passado, o trajecto, o que a Tradição consagra como o que Jesus terá percorrido aclamado como rei antes da reviravolta das multidões que alguns dias depois gritarão a pedir a sua crucifixão.

A Igreja de Sant’ Ana, também segundo a Tradição construída sobre a casa da natividade de Maria, perto da piscina de Betesda onde, diz João, Jesus curara o doente que nunca conseguia chegar às águas quando estas se moviam, abriu as suas portas aos que quiseram entrar e foram muitos os que foram permanecendo ao longo da mais de uma hora que a procissão demorou a ir chegando. O Patriarca ia falar e falou, em árabe primeiro, porque a maior parte dos presentes eram de língua árabe, e depois em inglês, para quem soubesse. Falou da Paixão de Cristo e da natural consequência da participação na procissão: a definição de cada um pela atitude de um dos vários intervenientes dos acontecimentos a comemorar esta semana aqui: Maria ou Madalena, Pedro ou Judas ou João, as santas mulheres ou as mulheres de Jerusalém, Verónica ou Simão, Herodes ou Pilatos, ou só parte da multidão, inconstante e volúvel. E deu a bênção, com a relíquia da Santa Cruz que aqui é de crer que seja mesmo.

Tive pena que não fosse as palmas antes do sangue, como é costume e manda a liturgia. Mas aqui é assim.
Ao sair a custo do recinto, como se estivesse a arrancar-me do meu Lugar de sempre e para sempre aqui voltaram-me as palavras de Agostinho: Ó Beleza, tão antiga e tão nova, tarde te amei. Quão tarde te conheci, Jerusalém!, e por causa da Beleza lembrei-me de uma interrogação, a do príncipe Michkine, acho que é assim que se escreve – O idiota, de Dostoievski: Que beleza salvará o mundo?, e por causa das palavras do Patriarca que ainda pairavam sobre o rufar dos bombos e das caixas e do chinfrim das gaitas de foles das fanfarras dos escuteiros lembrei-me de um outro príncipe, este maquiavélico, que teorizou o poder. E sei que a Páscoa aqui se percebe mais profundamente como a necessidade visceral de escolher.

Hoje, desde os quarenta minutos do dia, todo o dia foi beleza. Será esta a Beleza que salva o mundo? Aqui, tempo e espaço, em pleno Quinto Evangelho, chega a ser evidente que sim.

Jerusalém, Domingo de Ramos, 1 de Abril de 2012
Pe. José Nuno

ps – os próximos três dias serão de silêncio, por causa dos três seguintes. Há muita Beleza por pousar. E durante o Tríduo inevitavelmente serei mais curto. Tentarei mais simples, também. Votos de bela Semana Santa!

segunda-feira, 2 de abril de 2012

2º passo - Que futuro diz o Sepulcro

De manhã, neste Sábado véspera de ramos, fomos ao Lugar de amanhã, a Betphagé.

À tarde, antes das três, quatro Kawas – homens vestidos com trajes otomanos, hoje mais ataviados que habitualmente, até uma espada arqueada presa à cintura – a abrir e a marcar o ritmo, batendo compassadamente sobre as pedras das ruas com os seus pesados bastões de extremidades metálicas, os Franciscanos de Convento de São Salvador saíram do Sede da Custódia da Terra Santa. Subiram o topo da rua de S. Francisco, enveredaram pela dos Frères, voltaram à esquerda pela de Bab El-Jawalida e entraram no Patriarcado Latino de Jerusalém. Aqui, o Patriarca com os seus cónegos e o seu seminário incorporaram-se no cortejo, que passou a ser encabeçado pela Cruz Patriarcal, duas traves horizontais. Éramos, agora, mais de uma centena os que, pela rua do Patriarcado Latino, depois pela Omar Ibn Al-Khattab – califa – até à de David – rei – e, a seguir, pela do Bairro Cristão até à de Santa Helena – imperatriz –, em procissão nos dirigimos à basílica do Santo Sepulcro.

O enunciado dos nomes das ruas é suficiente para transmitir a “compleq-cidade”, perdoe-se-me o jogo. Quão longa história no itinerário curto desta procissão que amiúde percorre as ruas de Jerusalém!:

David (c. ano 1000 aC) e o Povo de que foi rei, o êxodo e os exílios, a Torah e os profetas, as infidelidades e os juízes, a promessa e as alianças, as guerras – entre outros, os filisteus, consoantes flst que se tornam plst, palestin – e as conquistas, tudo mas principalmente o Templo de Salomão (ano 966 aC), purificado pelos Macabeus (ano 164 aC), feito novo por Herodes, o Grande (ano 20), o Santo dos Santos sobre o rochedo de Moriah, para os judeus, o do sacrifício do filho por Abraão (c. ano 1850 aC), para os muçulmanos, ponto de partida da fundacional ascensão nocturna de Mahomet em cavalo alado (ano 621), assinalada pela Mesquita dita de Omar, o conquistador de Jerusalém (ano 636), mas, de facto, a da Cúpula do Rochedo, só posteriormente ao califa construída (ano 691), significativo sinal da novidade do Islão entre estes muros;

Helena (ano 326), a mãe do imperador do Cristianismo-religião-do-Império (ano 313), o mesmo Império da destruição do templo (ano 70), peregrina da descoberta da Santa Cruz e impulsionadora das primeiras magníficas basílicas sobre os Lugares Santos, que, após a divisão do Império, agora não já sob Roma, mas sob Bizâncio (ano 395), não resistiram ao ímpeto avassalador dos Persas (ano 614);

São Francisco e a sua “cruzada alternativa” (ano 1219), não ingénua!, no quadro contraditório do desastre moral das Cruzadas, que ao fundarem o Reino Latino de Jerusalém (ano 1099), instituíram o Patriarcado do mesmo, que, por seu turno, não subsistiu ao inexorável retorno da espada (ano 1187) – ficaram os Franciscanos, subsistindo pacíficos a todas as violências que os séculos trouxeram, ou voltando sempre, sendo que eram a Custódia da Terra Santa (formalmente, desde 1342), os guardiães do Monte Sião e resistência viva da vida dos Lugares Santos, como continuam a ser quando o Patriarcado já regressou (ano 1847).

Bab El-Jawalida, a rua da Porta Nova, em árabe, como a dizer que em Jerusalém o cristianismo é árabe, já que esta porta, a última aberta na muralha (ano 1889), tinha como objectivo facilitar o acesso entre o Bairro Cristão e novos edifícios cristãos extra-muros; pediu-a o Cônsul de França, potência católica europeia – as outras eram a Bélgica, a Itália e a Espanha – diplomaticamente investida na missão de proteger os direitos dos católicos na Terra Santa, com o intuito de aceder à nova e imensa Hospedaria de Notre Dame, hoje confiada aos Legionários de Cristo, edifício de passado bélico, já que, durante a primeira Grande Guerra, serviu de quartel-general às forças otomanas que dominavam intermitentemente a Palestina desde 1770, até que Edmund de Allenby, apeando-se do cavalo por respeito para com a Cidade que reconhecia santa para Judaísmo, Cristianismo e Islão, nela entrou a pé (ano 1917) para instaurar o Mandato Inglês da Palestina, que duraria até que os judeus, legitimados pela tragédia indefinível da Shoah, holocausto indizível do seu povo e da própria Humanidade do Homem – e apoiados na Declaração Balfour, que prometia o “lar nacional judaico na palestina” (ano 1917), ao arrepio do Acordo Hussein-McMahon, que havia prometido ao palestinenses, no mesmo território, fazer parte da “grande nação árabe” (ano 1915) –, declararam e alargaram o Estado de Israel, (ano 1948 e os Seis Dias de 1967), ficando os palestinenses um povo sem país.

Tanto e tão espesso passado! Que futuro?

Sempre que o Patriarca Latino de Jerusalém participa em celebrações no Santo Sepulcro, os Franciscanos da Custódia da Terra Santa vão ao Patriarcado e acompanham-no. Como hoje, o Patriarca é recebido solenemente à porta da Basílica pelo Guardião da Fraternidade franciscana que cuida dos Lugares católicos aí existentes, organiza e anima a liturgia, acolhe os peregrinos e serve a comunhão com os Gregos – por cá diz-se assim dos Ortodoxos, como os romanos somos simplesmente os Latinos – e os Arménios.

Hoje, o padre Fergus Clarke, abertas as portas, o grande órgão elevando os primeiros acordes do Te Deum, saudou o Patriarca Fouad Twal e ofereceu-lhe a estola; o Patriarca ajoelhou e beijou a Pedra da Unção, diante do grande mosaico dos três momentos da Morte do Senhor: Deposição, Unção, Sepultura; das mãos do Guardião recebeu um Crucifixo que também beijou; foi incensado e aspergiu os presentes com água. Tudo isto sob o olhar alto das Capelas do Calvário, sobre o acesso à de Adão.

A procissão re-organizou-se e dirigiu-se à edícola – do latim, “pequena casa” – do Túmulo santo; à porta desta, um ministro de cada uma das principais Tradições cristãs presentes: um latino (franciscano), um grego e um arménio; o Te Deum percorria a Basílica, elevava-se agora, cónico, na sonoridade dos tubos pela verticalidade circular da Anastásis- do grego, “ressurreição” –, onde a luz jorra do alto por altíssima clarabóia a encimar a cúpula imensa raiada e estrelada; estacionados frente à entrada da edícola que abriga o Túmulo, podíamos ver a obscuridade interior; acompanhado pelo Vigário Custodial, o Patriarca entrou para venerar o Lugar da Ressurreição do Senhor; o Te Deum continuava, gregoriano, as sílabas suaves e seguras, melismáticas, resistindo a render-se, longas, prolongadas nas vozes que as diziam, bailando jubilosas a melodia antiga, entre as imensas colunas, no lugar da história e do mundo que mais o justifica, aqui, tempo e lugar, Jerusalém.

Retomo a interrogação que deixei suspensa às portas da Basílica do Santo Sepulcro. Que futuro? Que futuro diz um Sepulcro?

Naquela tarde de Sábado, na Basílica do Santo Sepulcro, aconteceu solenemente a procissão quotidiana que todos os dias, com excepção de Quinta e Sexta-Feira Santa, os Franciscanos aqui realizam, há séculos, visitando, em 14 passos, os momentos da Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor. O Ordo Processionis apresenta um brevíssimo apontamento histórico sobre as origens e desenvolvimento deste ritual, enraizando-o já na antiga Igreja de Jerusalém, que realizava procissões litúrgicas aos lugares santos da Cidade, a que se refere Egéria, a monja galega (?) que visitou a Terra Santa entre 392 e 394. Crónicas de peregrinos do séc. XIV referem a procissão já na Basílica, mas ainda não quotidiana. Os Franciscanos virão a dar-lhe este ritmo e, progressivamente, a procissão caminhará para o trajecto e o formulário que hoje apresenta. Uma reforma de 1623 consagrará o essencial que, em 1925, fixa definitivamente as 14 Statio e os textos cantados.

A procissão, entre as quatro e as cinco da tarde, inicia-se no Altar do Santíssimo Sacramento na Capela da Aparição de Jesus ressuscitado a sua Mãe – tradição não fundamentada nos Evangelhos mas que remonta já a Taciano e, depois, S. Efrém, que viveu no séc. IV. A língua usada é exclusivamente o latim, o que, neste contexto, tem todo o sentido. De facto, na Basílica do Santo Sepulcro, todas as outras Igrejas usam línguas litúrgicas, que são um elemento distintivo da sua identidade. Além disso, é tão grande a fono-diversidade católica, cada dia, que seria difícil encontrar uma dominante e impossível uma comum; em latim, são no entanto distribuídos os Ordo Processionis com traduções em cinco línguas modernas – sim, o português é uma delas. Todos os participantes recebem este guia, bem como uma vela.

Em cada Lugar visitado, canta-se um hino, uma antífona – texto evangélico referido ao momento – com responsório e uma oração; a terminar cada etapa, canta-se o Pater, uma Ave Maria e o Gloria Patris. Tudo é cantado, do princípio ao fim, em recto tono ou, em Gregoriano, apenas os hinos a partir das estações do Calvário.

Das catorze estações, a primeira é eucarística; depois, até à sexta, contemplam a Paixão antes do Calvário: coluna da Flagelação, Prisão, Divisão das vestes, descendo duas vezes, cripta do encontro da Santa Cruz, subindo, capela de Santa Helena, subindo de novo, coluna da Coroação e Impropérios; subindo ao Calvário, assinalam-se a Crucifixão, a Morte e a Senhora das Dores – a imagem portuguesa da Mater Dolorosa; descendo, para-se junto à Pedra da Unção e segue-se para o Santo Sepulcro, onde se comemora a Ressurreição; visitam-se, finalmente os lugares da Aparições, a Madalena e a Maria, e tudo conclui com um breve momento de adoração e a bênção eucarística.

Diariamente este itinerário santo se cumpre, nos Lugares santos maiores da fé cristã. Os franciscanos da comunidade da Basílica têm este encargo e cumprem-no fielmente, com uma constância e uma perseverança dignas de registo. Sempre, pelo menos doze participam nesta comemoração ritual dos Mistérios da Salvação: um preside, dois assistem-no, três estão em diversos lugares da Basílica, a tentar criar condições de silêncio e de respeito para que o acto possa cumprir-se com dignidade, os outros integram a procissão e vão organizando, em cada momento, os demais participantes, que tanto podem ser muitos como quase ninguém. É belo e pleno de significado esta revisitação quotidiana da memória dos Acontecimentos trágicos e gloriosos da Páscoa, aqui, nos lugares em que aconteceram, Quinto Evangelho. Seria tão enriquecedor, para as peregrinações organizadas que vêm de todos os lados, aproveitar esta expressão quotidiana tão significativa, tão católica, de veneração pelos Mistérios Pascais. Algumas fazem-no.

Ainda que não haja fundamento bíblico para alguns, todos eles vêm de Tradição que se perde no tempo. E a Tradição, entre outras coisas, quer dizer isto: ainda que o Acontecimento não tivesse acontecido ali, aqui venera-se o significado salvífico desse acontecimento, contemplando esta realidade espiritual ajudados pela materialidade de uma pedra, uma coluna, o chão, uma imagem, um ícone, um altar… o que seja, que se ofereça aos nossos olhos e ao tacto, que possamos, se simples, tocar e afagar e, liturgicamente, incensar e cantar e, pessoalmente, até beijar e sentir a Presença e confiar uma prece e contar um desabafo; e se não aconteceu ali no passado, até se não aconteceu, venerar assim, com esta intensidade toda dos sentidos todos faz acontecer no presente, permite a Deus tocar-nos e beijar-nos e acariciar-nos, a ouvir-nos e consolar-nos pela veneração que lhe oferecemos e que devém mediação da sua acção salvadora no sentido íntimo do Acontecimento contemplado… e permite a nós sentirmo-nos ouvidos e consolados.

Neste sábado véspera de ramos, a Procissão foi a mesma de todos os dias, mas solene, com centenas de pessoas, presidida pelo Patriarca, toda cantada em gregoriano e polifonia, não simplesmente em recto tono e, principalmente, dando três voltas ao Sepulcro, como três são os dias da Morte à Ressurreição, a vela acesa na mão, cantando transportados pela sonoridade solene do grande órgão as palavras antigas, como que eternas, do hino Aurora Caelum… todo o mundo rejubila! Ressurgiu o Redentor!

Retomo as questões que deixei suspensas, desta vez no início da Procissão que, cada dia, simples ou solene, comemora a Paixão, Morte e Ressureição de Jesus: Que futuro diz este Sepulcro? Que pode ele dizer sobre o futuro desta Terra Santa?

O passado dita premências. Ao fim de dois meses aqui, a entrar na Semana Maior, uma convicção tenho por certa, ouvida também a muitos de muito diversas proveniências: o futuro, aqui, passará pela presença dos Cristãos. E esta, segundo me dizem, cada vez se vê mais difícil, porque a tensão israelo-palestiniana funciona como uma tenaz que aperta e impele os cristãos para a emigração. De algum modo, é o mesmo movimento que se vai verificando, nalguns países já em registo martirial, como claramente acontece no Iraque… e mais, já… e o que mais se verá, dizem-me os que me falam a partir do conhecimento dos segredos desta Terra, que só aos que a vivem é dado conhecer.

O itinerário percorrido pela Procissão, cada dia, visita Lugares da memória viva de uma sabedoria diferente – alternativa, como o foi a singular ‘cruzada’ de Francisco, entre os mais próximos no seguimento, a este lado da história –, é visita a um Vivente que atravessou estes Lugares tornando-os um tempo sem prazo nem limite, ao semear-se aqui, na noite da terra, e dela amanhecer dando ao mundo um Dia novo, cada dia, novo. Estes Lugares são, por isso, definidores de um aqui permanentemente gerador de itinerários por percorrer, de novidade a descobrir, de vida para acolher.

Os cristãos, infinitesimal minoria – serão 2%, seja no estado de Israel, seja nos Territórios da Autoridade Palestiniana – da população da Terra Santa são a Igreja-Mãe, desde sempre assim chamada, como frequentemente o recorda o seu pastor actual, o Patriarca Latino de Jerusalém. Todos aqui nascemos, gerados nos mistérios que esta Terra conheceu e em que os ancestrais dos cristãos de hoje, aqui, acreditaram. Seguiram Jesus, numa peregrinação que nEle aqui começou e não terá fim enquanto a realidade inteira não se encontrar nEle instaurada e Ele vier, de novo, o Justo vestido de Amor, o Amante coroado de Justiça, a consumar a esperança nua, a flagelada e humilhada, coroada de espinhos. Aos cristãos de hoje, aqui, filhos dos primeiros discípulos, membros das primeiras comunidades de crentes na Terra de Jesus, cabe cumprir um desígnio histórico de paz e reconciliação, um desígnio pascal.

Na manhã deste sábado, véspera do Domingo de Ramos, seguindo o programa das Solenidades da Semana Santa em Jerusalém, os franciscanos da Custódia da Terra Santa tinham peregrinado a Betphagé e celebrado já, como quem abre num dia a espera do outro dia, redimindo o presente pelo futuro, ao comemorar o passado, a Solenidade, simplesmente, só Palavra e Beleza. E muitas pessoas, que a Igreja não foi suficiente.

Ainda não tinha ido a este santuário. Aqui se recupera incessantemente a última etapa de Jesus no caminho para Jerusalém, a exaltação do povo em palmas para desespero dos chefes. As suas paredes e a abóboda são um fresco. São três os níveis de leitura. O primeiro, ao nível dos olhos, conta os acontecimentos que os evangelistas narram, o corte de ramos nas árvores e palmeiras, o asno submisso, as capas que se estendem, as crianças que cantam, os homens e as mulheres que aclamam, Lázaro, Marta, Maria, Apóstolos, Jesus e, estranhamente neste contexto de hossanas, três homens, com o ar preocupado de quem tem poder e o sente ameaçado, um deles com um rolo que pende, aberto, da sua mão, com uma citação, Jo XII 19. O segundo nível de leitura é a Via Crucis. A abóbada, um jardim suspenso, é o terceiro nível de leitura, pequenos ramos de oliveira e flores dos campos, espalhadas ao calhas, como se o pintor tivesse pintado desenhando com os braços gestos de semeador, as mãos cheias e pródigas de flores campestres e verdes ramos a lembrar unções; olhando melhor, percebi um dinamismo estranho nas flores e nos ramos da abóboda: não pareciam atirados de baixo, pelas multidões em festa, pareciam lançados do alto, tombando mansamente… sobre a Via Crucis. A paz e a confiança.

Jo XII 19: Os fariseus então disseram uns aos outros: vêde, nada conseguis, toda a gente vai atrás dEle.

Jerusalém, 31 de Março de 2012

Pe. José Nuno

sábado, 31 de março de 2012

1º passo - Jerusalém, mãe com rosto português

Jerusalém, a cidade da paz, é um lago em tempestade onde o mundo todo vem para se ver no espelho. Aqui o passado é sempre presente e o futuro, talvez por ser esta a cidade onde morrem os profetas, não é profetizável. Porque Jerusalém é como a palma da mão da história: todas as linhas da vida a percorrem, desenhando projectos de humanidade misteriosos e indecifráveis, que arrastam o tempo para além da linha do horizonte, a única, esta, que se pode descrever, ainda assim sem a dizer inteira na sua beleza, levante-se sobre ela o sol ou tombe a poente.

Jerusalém petrifica quem chega – esta é a cidade das pedras santas e, além disso, também daqui partiu Petrus, Pedro, o primeiro dos apóstolos, que consigo levou a primazia à capital do Império; este haveria de vir e reduzir Jerusalém, a cidade que petrifica os chegados, a um monte informe, porque dela não restou pedra sobre pedra.

Jerusalém é uma cidade pétrea que petrifica de espanto, cala de pasmo. Jerusalém, tremenda e fascinante – tremendum et fascinans, diria Rudolf Otto, o teólogo da experiência do numinoso, do sagrado como mistério – a cidade do Muro, do Túmulo e da Rocha.

Jerusalém, cidade pétrea, de pedras mudas com nomes divinos em nome de quem todos clamam, pedras gritantes caladas que emudecem a boca de quem chega, inesquecível para quem parte, não fora a língua colar-se ao palato. Não para quem parte; antes, para quem é levado, porque de Jerusalém ninguém parte: quem quer que a deixe vai levado, empurrado, exilado. E esta é a trama do drama de Jerusalém, tragi(-)cidade inconclusa sempre iminente, lago em tempestade em que a história se vê ao espelho, como quem olha a palma da própria mão à procura de si e do seu a-vir… tantas vezes irremediavelmente montão de escombros… sempre provisório!, proclama Jerusalém.

Jerusalém é esta cidade que engole e faz seu – como se a donzela é que desposasse o construtor, porque construir é o modo de ser que a cidade sempre reclama – quem atravessa os umbrais das suas portas.

Jerusalém é avassaladora. Tudo aqui é excessivo, é demasiado significado para tão circunscrito significante: pode o trino ser uno? Por isso Jerusalém avassala, torna vassalo quem chega e a ninguém – di-lo o fio dos séculos lido na sucessão dos estratos arqueológicos – presta vassalagem: quem quer que a julgue tomar apenas a serve e perde-a no seguinte solavanco do tempo a fazer-se idades do Homem nos patamares sobrepostos e depois escavados, era após era, nas entranhas maternas universais desta cidade de pedra-entranhas de mãe. Jerusalém é a cidade-mãe.

O deambular peregrino de um inestimável ano sabático trouxe-me a Jerusalém. E a cidade calou-me profundamente. Atou as palavras em mim e atou-me a elas, com um tão veemente silêncio, que só agora, ao fim de dois meses, talvez por força da Páscoa que se avizinha, consigo libertar as palavras ouvidas e caladas e tentar dizer uma liberdade nova, a suprema tarefa da palavra humana, nesta cidade, entre todas a da palavra divina. A esta quereria atar-me, atar-me para sempre, definitivamente, de uma vez por todas. Mas compreendo que a liberdade não é assim. Ela torna todos os compromissos provisórios e, por isso, só ela – a liberdade – lhes garante cada dia novidade e instaura, no seu seio, o lugar amniótico da verdade, tornando cada instante momento criador. E Jerusalém é como a liberdade, cidade-mãe, lugar amniótico, respiração sôfrega, dores de parto, dores de morrer para dar vida – todos lá nascemos, diz a palavra inspirada, que interpretação restritiva alguma consente, por mais absoluto que seja o poder que a pretenda.

É!, é o vir da Páscoa ao meu encontro, aqui, em Jerusalém, onde ela acontece(u) que desata em mim as palavras e me desata delas impondo-me oferecer as que me são dadas. Hoje inicio esta colaboração – poderá ser quotidiana, ver-se-á – sem pretensão nem pretensões com a Ecclesia. Sendo-me dado o privilégio de viver a Páscoa em Jerusalém, quero partilhá-lo, quanto seja partilhável, com os leitores que se aproximem desta janela aberta sobre o mundo que é a agência noticiosa da Igreja no meu país. Poderia, como já aconteceu e muito legitimamente, partilhar com os meus amigos. Mas a Páscoa não consente tal segredo. Oferece em si mesma um tal dinamismo de universalidade que pede esta aventura de partilha, de exposição pessoal num tempo que quero discretamente vivido. Decido fazer um parêntesis no escondimento, por fidelidade presbiteral à Páscoa. Encaro o percurso que agora começo convosco como modo de vivência ministerial do Mistério nuclear dos mistérios de que sou ministro, nesta Páscoa singular da minha vida de padre, a viver tempo sabático.

Escrevi aqui destacando esta referência à circunstância de lugar – como escreverei sempre, excepto se me esquecer ou distrair. É que este aqui dito desta cidade, nesta cidade, Jerusalém, reveste-se de um significado singular. É em razão deste significado que intitulei esta rubrica de crónica e reflexão da experiência da minha Páscoa em Jerusalém como o fiz: Aqueles dias, aqui.

Paulo VI, o primeiro papa a percorrer, em 1964, as ruas deHoje inici Jerusalém depois que Pedro partiu, na Exortação Apostólica Nobis in animo, de 25 de Março de 1974, sobre o dever de todos os cristãos assumirem a Terra Santa como seu património espiritual e contribuírem generosamente – o que é cada vez mais premente, de resto – para fazer face às necessidades da Igreja presente na Terra Santa, que definiu como a geografia da salvação, lugar da história da salvação.

Ao dizer aqui de Jerusalém, é esta circunstância de lugar que invocamos – mas é Jerusalém apenas circunstância de lugar? Na Exortação pós-sinodal Verbum Dominum, afirma o Papa Bento XVI, entretanto também já peregrino de Jerusalém: «As pedras sobre as quais caminhou o nosso Redentor permanecem para nós carregadas de memória e continuam a ‘gritar’ a Boa Nova». O meio é a mensagem, diria Marshall McLuhan, que atravessou o século XX a pensar a comunicação. E continua o Papa: «Por isso os padres sinodais recordaram a feliz expressão que chama à Terra Santa o ‘Quinto Evangelho’».

A genialíssima intuição deste apelativo, muito usado aquando da peregrinação de Paulo VI – contou-me hoje mesmo o Guardião do Convento de São Salvador – deve-se a um dos expoentes do Positivismo do século XIX, Ernest Renan, que conheceu a fundo os Evangelhos e fez arqueologia. Chamou à Terra santa Quinto Evangelho dado «o impacto do acordo entre os textos e os lugares, uma maravilhosa harmonia entre o texto evangélico e a paisagem», como escreveu na introdução à sua Vie de Jésus, no terceiro quartel do século que assinalou com esta obra.

Aqui é o Quinto Evangelho! A circunstância de lugar, em Jerusalém, na Terra Santa, é evangelho. Na experiência desta realidade enraízo esta rubrica: Aqueles dias – estes que chegam em anual comemoração solene, os da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo que conduzem ao Dia maior, o Dia dos dias, o Dia que fez o Senhor raiz dos dias sem fim, o Dia da vitória sobre a morte – aqui. O Lugar é Palavra e a Palavra é Presença e a Presença é Encontro. Foi e é aqui!

Já hoje o vivi. Começámos à Hora, entre dezenas de soldados de metralhadora que fizeram, apressados – hoje foi mais um dia de tensão nesta cidade excessiva –, parte do mesmo caminho que percorremos lentamente, acompanhados pelo convite insistente à oração que descia dos minaretes; foram catorze estações, a Via Crucis, catorze vezes aqui. E este aqui diz a Jerusalém-mãe, nosso lugar, que nos envolve, como com um manto de salvação, que nos toma, como que nos engole nas suas ânsias de mãe que vive agonia de morte no sofrimento de ver dar a vida o Filho, descendência da sua realeza. Em Jerusalém, aqui, o Evangelho é como o ar – a gente respira-o com os olhos e ele dilata-nos o peito, visita cada uma das nossas células e vivemos. Em Jerusalém a Palavra é Lugar e o Lugar é Palavra.

Mas já antes da Via Crucis o havia sentido: na basílica do Santo Sepulcro, esta manhã, última sexta-feira da Quaresma, só neste dia, cada ano, celebra-se no altar da Mater Dolorosa. Esta celebração é a primeira que consta do programa da Páscoa Latina divulgado pela Custódia da Terra Santa, organismo franciscano que guarda e cuida dos Lugares Santos. Diz-se Páscoa Latina para distinguir da celebração da Páscoa dos ortodoxos, que este ano acontecerá uma semana mais tarde, uma vez que os nossos irmãos orientais seguem o calendário juliano.

O altar da Senhora das Dores encontra-se na capela do Calvário, à direita quem entra na basílica, subindo umas íngremes escadas. Nesta capela há dois lugares: o da Crucifixão e o da Morte do Senhor. Entre ambos, a altar da Mater Dolorosa. E depois é isto: em Jerusalém, o aqui também é tempo – o altar da Mãe, que estava

de pé junto à Cruz, aqui, situa-se entre a hora tércia e a hora noa, narra Marcos, o evangelista do ano. A ‘Hora’ de Jesus, diria João, o que aguentou aqui até ao fim, conheceu estes dois momentos marcantes: o da crucifixão, tércia hora, e o da morte, hora noa. O altar da Mãe está entre estes dois momentos. O aqui dito destes lugares diz a aliança entre espaço e tempo. Clero ou povo, todos éramos peregrinos aqui. E Jerusalém é o lugar por excelência de peregrinação, porque peregrinar é, precisamente, o modo de existir dos que vivem a aliança perfeita entre o tempo e o espaço, movendo-se neste como quem atravessa aquele e toca com as palmas das mãos abertas, muito abertas, a eternidade e continuamente as retira de volta ao tempo para marcar o espaço com as palmas das suas mãos abertas, muito abertas, livres, muito livres, como as crianças quando assinam, antes da escrita, presentes filiais.

Entre a hora tércia e a noa, entre o lugar da crucifixão e o da morte, aqui, um belo triste rosto de mulher português. Sim, a Mater Dolorosa do Calvário em Jerusalém, aqui, a Senhora das Dores do lugar e do tempo das dores de que é a Senhora, é um

rosto de mulher português. Certamente há, em Portugal, quem o saiba. Para mim foi surpresa completa.

É belíssimo o busto da Virgem Maria, uma espada cravada no peito e as sete dores inscritas no rosto, que se encontra na Capela do Calvário, aqui, entre o altar da Crucifixão e o da Morte de Jesus, entre a hora de tércia e a de noa, aqui, na basílica maior da fé dos cristãos; foi oferecido pela rainha D. Maria I, em 1778. A g

eneralidade dos guias não refere este dado – só o encontrei em um – ao contrário do que acontece com outras ofertas de reis e poderosos de todo o mundo. Mas, segundo atesta o franciscano irlandês guardião deste templo, Fr. Fergus Clarke, a quem pedi confirmação, edições mais antigas referem este facto. No mesmo sentido apontou Fr. Cristóforo Alvi, responsável do arquivo da Custódia, ele próprio figura de arquivo, franciscano de antiga cepa, barbas brancas silenciosas pelo meio

do peito: não se encontram os documentos da doação, mas ela é certa. Aliás, é sabido que a Rainha, justamente chamada ‘a Pia’, fez mais do que uma oferta ao Santo Sepulcro. Há dados referentes, por exemplo, a uma lâmpada de ouro, quatro anos mais tarde.

Tanto quanto

posso perceber, o busto da Virgem das Dores oferecido pela Rainha Pia, túnica vermelha e véu branco sob manto azul, diadema e auréola com sete estrelas, é a única escultura em madeira de todo o Santo Sepulcro. Neste aqui único de ícones e mosaicos, esmaltes e frescos e óleos sobre tela e madeira; de rendas e bordados sobre linhos e sedas e damascos; de baixos e altos relevos, em bronze, prata e ouro e lenhos vários, por um único lenho, apenas a imagem da Senhora das Dores, que a rainha de Portugal ofereceu, é uma escultura de madeira. E que bela é e quanto

beleza confere a este passo singular do aqui da passio de Jesus, Ele infinita paixão por compaixão, a Mãe, infinita compaixão pela paixão do Filho. Maria-Mãe, figura de Jerusalém: todos lá nascemos. A compaixão em pessoa, lugar amniótico de liberdade nova, figura da Igreja-Mãe. Vem beber-te aqui, Mãe-Igreja – parece que pede o seu silêncio compadecido, olhos descidos sobre o chão, de nos ver inebriados de outros cálices.

A sua mão esquerda cinge ao peito o manto azul, como se apertasse a si a túnica inconsútil do Filho, sem costura, de uma só peça, tecida de alto a baixo, metáfora da unidade da Igreja neste aqui espaço e tempo nuclear do Reino, sorteada entre soldados do Império. A mão direita esboça estático movimento apenas adivinhado.

O seu rosto materno diz serena e tristemente uma das sete palavras do Filho na Cruz, gravadas no bronze da grade sob o seu altar: consumatus est. Conheço aquele olhar, aquela serenidade triste, aquela boca entreaberta, a pronunciar um silêncio imenso e perplexo, porque os gritos e os gemidos há muito se esvaíram, impotentes. Conheço aquele rosto que encontrei aqui e que aqui me fez trazer os muitos rostos em que o vi, antes de aqui vir e o ver. Vi-o muitas vezes, no meu Hospital, rosto de mães que acompanharam filhos ao longo de longa doença e participam n

a sua morte. Não o rosto das mães órfãs de seus filhos por morte súbita. No rosto dessas ecoa toda a estridência do absurdo de se verem repentinamente roubadas a si mesmas. No rosto destas, como Nesta, aqui, paira suavemente a paz magoada do descanso de um cansaço muito antigo, como se a Via Crucis viesse de antes do princípio do mundo e fosse até ao fim do mundo e o filho fosse sempre o mesmo e a mãe também… como se teimar que ele vivesse é que fosse roubar o filho ao seu lugar, como se só perdendo-o é que o voltasse a encontrar, oferecendo-o… oferecendo-se… consumatus est.

Hoje, aqui, ouvir face a este rosto: Mulher, eis o teu filho – e, depois – Eis a tua mãe, foi diferente: foi Quinto Evangelho. Como foi diferente, também, entregar a voz às palavras antigas do Stabat Mater, que nos envolveram, aqui, na ambiência solene e decantada que só o canto gregoriano instaura.

Hoje, aqui, o Vigário Custodial, Fr. Artémio Vitores, da Ordem dos Frades Menores, disse que a Addolorata foi oferecida por Portugal no século XVIII. Portugal aqui. O Fr. Artémio contou que,

no incêndio de 1808, que devastou parte da basílica, a imagem esteve prestes a perecer, tendo sido resgatada in extremis pelo – cito em Italiano – «fratello sacrestano Fra José Bueno, il quale passò, abbracciato alla Madonna, tra le fiamme, senza esperimentare alcuna bruciatura. Madre e figlio avevano adempiuto le parole di Gesù sul Calvario! L’amore alla nostra Madre ci farà

superare le più grandi difficoltà! Basta affidarci a Maria!» (fiamme = chamas; bruciatura = queimadura; adempiuto = cumprido - vb cumprir). Foi aqui. E aqui é onde o amor trepassa o tempo, como a espada a alma, reconduzindo a existência toda a cada instante, recapitulando a substância da realidade, trino o uno e este trino.


Pequeno pormenor: o busto da
Mater Dolorosa portuguesa encontra-se espalhado por todo o mundo, uma vez que, em alto relevo, figura na pequena medalha da maior parte dos milhões de terços vendidos na Cidade Santa, que são o objecto mais adquirido pelos peregrinos dos cinco continentes para levar como sinal de lembrança para outros ou guardar como recordação para si. Se calhar, caro leitor, tem uma em casa. Santa Páscoa.Jerusalém é a nossa mãe. E é português o rosto desta mãe, aqui.

Jerusalém, 30 de Março de 2012

Pe. José Nuno